As novelas, séries e filmes têm a capacidade de ser um espelho da realidade. Algumas cumprem esse papel, no entanto, parece-me que nem todas se adaptam ao meio que as circunda. São muitos os que optam por guiões onde as histórias, por mais antiquadas que possam parecer, não são alteradas mesmo que o mundo ao seu redor esteja a ruir. Então, tendo em conta isto, o que esperar de séries policiais em 2021, cujas novas temporadas estreiam depois da morte de George Floyd?
Antes de mais nada, é extremamente necessário fazer-se um contexto de tudo! É importante perceber quem foi George Floyd e porque é que o seu nome tem tanta relevância para esta conversa. Para tal, é necessário voltar oito anos atrás e começar pelo princípio: o movimento do Black Lives Matter, também conhecido por BLM.
O movimento surgiu em 2013 depois de George Zimmerman – um jovem branco – ter alvejado e morto o adolescente Traynon Martin – afro-americano – e não ter sido acusado pelo crime. Assim, Alicia Garza, Patrisse Cullors e Opal Tometi criaram o movimento político negro – BLM – com o intuito de acabar com as disparidades raciais que colocam corpos negros no fundo da cadeia alimentar. Mesmo dentro dessa cadeia, o movimento tem noção de que os homens negros, heterossexuais, cisgénero estão em vantagem em detrimento às mulheres negras, pessoas da comunidade queer ou de transsexuais e pretendem mudar isso, fazendo com que todos estejam no centro desta luta pela igualdade racial, onde nenhum negro deve ser esquecido porque, de facto, todas as vidas negras importam!
Um ano mais tarde, Mike Brown, é assassinado por Darren Wilson, um agente da polícia branco. Tendo em conta toda a história entre afro-americanos e a polícia, sabemos que depois do seu encontro o resultado é muito pouco positivo. É quase como se, para a polícia, o homem negro fosse uma ameaça que, em caso de dúvida, deve ser abatida.
Em 2016 Colin Rand Kaepernick, jogador de futebol americano dos Estados Unidos, começa a chamar a atenção por protestar, de forma pacífica, durante o hino nacional, ajoelhando-se ou ficando sentado. O seu protesto relacionado com à brutalidade policial contra a comunidade negra é visto como uma ofensa, um desrespeito à bandeira americana. O que só mostrou o óbvio: uma bandeira merece muito mais respeito do que vidas humanas – caso elas sejam negras ou provenientes de qualquer minoria. Anos mais tarde, depois de inúmeros casos de brutalidade policial, como o caso da Breonna Taylor, surge, em maio de 2020, o assassinato que mexeu com o mundo inteiro: a morte de George Floyd. O afro-americano foi asfixiado por um agente da polícia, branco, que mesmo ouvindo os inúmeros «não consigo respirar» de Floyd continuou a fazer pressão com o seu joelho no pescoço da vítima. O homicídio foi filmado fazendo com que uma onde de protestos contra a brutalidade policial e contra a sociedade estruturalmente racista se fizesse sentir por todos os cantos do globo. Em todo o lado se ouviu “Black Lives Matter” e “I can’t breathe”.
Infelizmente, as coisas tardam a mudar. Pouco tempo depois, Jacob Blake, afro-americano, é alvejado sete vezes por um agente da polícia. Para além do BLM o mote “Defund the Police” começou a ganhar ainda mais força. O slogan, pretende retirar os fundos que são dados à polícia e entregar à comunidade. E há ainda os radicais que são a favor da abolição da polícia, uma vez que muitos afro-americanos sentem que o sistema policial não existe para os defender mas sim para os matar.
Neste sentido, parece-me de uma extrema relevância que o enredo das séries altere consoante o mundo que as cerca, mesmo que para isso tenham de ser criadas novas histórias e ou até novos personagens. Não podemos ter uma série policial que se esquece do mundo lá fora e aja como se a brutalidade policial fosse uma realidade a ser ignorada e é aqui que entra a minha cobaia para ser analisada.
The Rookie, que estreou em 2018, segue a história de John Nollan, – Nathan Fillion – um homem que, na casa dos 40 anos, decide mudar de profissão e tornar-se polícia. A série, foi bastante elogiada na sua primeira temporada por ter uma enorme diversidade étnica, de género de elenco e equipa técnica onde metade das suas argumentistas foram mulheres. Infelizmente, isso não impediu que o programa televisivo fosse envolvido num escândalo quando uma das protagonistas, Afton Williamson, que na série era tutora do agente Nolan, acusou um colega do elenco de assédio sexual e uma das cabeleireiras de racismo. Depois da situação ter sido investigada, a cabeleireira foi despedida mas o ator acusado – Demetrius Grosse – foi ilibado e Williamson, insatisfeita com o resultado, acabou por sair da série. A verdade é que o ator acusado não foi despedido mas pouco tempo depois deixou de aparecer na série. Mesmo com esta polémica a série seguiu com a segunda temporada e, agora, a terceira estreou em janeiro deste ano e é nítido o impacto que o movimento está a ter nesta temporada e seria irrisório negar isso.
O ator Brandon Routh entrou para o elenco como Doug Stanton e representa o tipo de polícia que o movimento luta contra: um agente extremamente preconceituoso. Nesta nova narrativa, o personagem Jackson West – Titus Makin Jr – vê a sua tutora ser substituída, assim West é apresentado a Stanton, o seu novo responsável. Jackson é negro, Doug é branco e esta diferença, especialmente quando o segundo é nitidamente racista e xenófobo, faz com que o primeiro entre em conflito não só com o tutor mas também consigo mesmo. Como é que ele se deve comportar quando é exposto a situações onde sabe que o seu mentor só está a agir daquela forma porque as pessoas são negras ou pertencentes a uma minoria? Tendo em conta que despedir um polícia que já tenha muitos anos de carreira só com provas circunstanciais é quase impossível, Jackson recorre ao chefe de departamento, também negro, e pede ajuda. Nesses episódios, podemos perceber os problemas que existem dentro do sistema policial e que eles são muito mais difíceis de resolver, uma vez que, para tal, teria de existir uma reestruturação em todo o sistema. E Alexi Hawley, criador da série, percebeu que é tempo de agir e falar abertamente sobre o assunto. Abrir um espaço para se falar sobre branco e negro, privilégios, “salvador branco” e profiling criminal discriminatório é imprescindível.
Tendo em conta o seu formato e todas as histórias contadas anteriormente, o tema da brutalidade policial provavelmente seria abordada na série, mas noto que graças ao BLM foi falado mais cedo e o enfoque dado tem sido muito maior. Não foi falado só em um episódio porque o tema agora está na moda e aquilo até é uma série sobre polícias. O tema da temporada parece ser esse e a história está a ser contada de uma forma bastante credível que vale a pena ser vista! Agora só nos resta esperar pelos próximos capítulos e torcer para que em Portugal, apesar da realidade não ser tão assustadora quanto a dos Estados Unidos, a arte comece a imitar MAIS a realidade.
The Rookie pode ser visto todas as quartas-feiras na AXN, às 22h50.