Verão de 1975. Nos cinemas norte-americanos estreava um filme que viria a mudar a história do cinema. Um filme que é unanimemente considerado o pai dos blockbusters de verão. Um filme realizado por um jovem de 27 anos que iria mudar não só a sua vida, como a vida de muita gente pelo mundo fora, sendo seguro dizer que nunca mais um verão, nunca mais uma ida à praia foi igual. Falamos claro de Jaws, que em Portugal recebeu o nome de Tubarão, qual premonição de que este seria O filme definitivo sobre o predador em causa, embora seja também muito mais do que isso.
Quatro anos antes, um jovem chamado Steven Spielberg tinha despertado a atenção da indústria com o seu filme de estreia, Duel, um thriller recheado de tensão na estrada, feito para a televisão mas que alcançou tamanho sucesso boca-a-boca que até viria a ser lançado no cinema internacionalmente. Três anos depois foi a vez do seu primeiro filme feito diretamente para o cinema. The Sugarland Express, outro road movie, outro filme apaixonante, com personagens carismáticas e filmado de um modo que mistura a arte com o fator entretenimento como mais tarde viria a ser característica sempre presente no trabalho do mestre. Spielberg era um jovem promissor, havia quem estivesse disposto a apostar nele e as audiências pareciam conectar com o seu trabalho. E assim chegou Jaws. Não sem os seus – muitos – percalços.
Na fase de produção, o filme deu que falar. De um pequeníssimo budget inicial de 3.5M de dólares norte-americanos, o orçamento derrapou para quase o triplo – 9M – e muito disso se deveu a vários inesperados problemas ocorridos durante as filmagens, incluindo “Bruce” – o tubarão mecânico – que foi uma dor de cabeça pois quase sempre apresentou problemas e quase nunca funcionou como deveria. Mas sabem como as pérolas se formam? Da mesma forma que se criam os clássicos: na adversidade.
Aquando do seu lançamento já existia muita expetativa. O livro lançado durante a produção – no qual o filme se baseia, embora com importantes alterações nas dinâmicas das relações – era já um sucesso de vendas, as sessões de teste tinham tido resultados excecionais e a estratégia de lançamento foi perfeita. “Quero que as pessoas façam fila para ver o filme, não quero que o vejam quando querem, mas sim quando podem” terá dito o chefe maior dos estúdios da Universal. Para que isso acontecesse? Depois de saber dos excelentes resultados de teste, ordenou que o filme estreasse em apenas metade dos cinemas previstos, aumentando a expetativa de todos os que ainda não o tinham visto. Tudo correu fantasticamente e o box-office chegou a números impensáveis. Mas vamos ao filme!
Mal os créditos começam a rodar somos invadidos pela tensão, pelo perigo eminente que emana do memorável tema principal da banda sonora de Jaws (de John Williams, pois claro!), enquanto a câmara percorre o fundo dos oceanos de uma forma acelerada. Somos logo presos ao ecrã. A cena corta e vemos alguns jovens adolescentes numa festa de praia. Um casal vai-se conhecendo e afasta-se do grupo. A jovem, mais rápida, menos embriagada, entra despida na água. O jovem luta contra o álcool e nem se consegue despir. Começamos a ver os acontecimentos de baixo para cima, do fundo do oceano para a tona da água. A música tensa recomeça, aumenta a sua intensidade, a jovem começa a ser sacudida, atacada e o rapaz, bêbado, adormece na areia. “I don’t want to die” são as palavras que ouvimos da boca da jovem, que morre sozinha e sem testemunhas. A espetacular cinematografia – que aproveita um belo amanhecer nessa cena inicial – ajusta-se na perfeição ao pânico da jovem e ao posterior silêncio que grita. O pânico está já instalado em todos nós e ainda nem o tubarão vimos. Na verdade, Spielberg criou tão magneticamente o suspense que apenas vemos a criatura na sua plenitude com uma hora e vinte minutos de filme!
A cena inicial de Jaws é uma autêntica lição de cinema. Poucos foram capazes de construir de forma tão rápida e eficaz um momento de tamanha tensão agarrando-nos de imediato ao ecrã. Relembra-nos o melhor do mestre Hitchcock e é mesmo nessa categoria que Spielberg demonstra estar já aos seus 27 anos. Essa cena dá também o mote a muito do que vai ser todo o primeiro e segundo ato de Jaws. Sem nunca se focar demasiado na criatura – ela representa todos os nossos medos, muitas vezes escondidos – Jaws foca-se nas pessoas e nas suas reações ao que vai acontecendo. Introduz-nos o mítico chefe Brody, recém-chegado à comunidade de Amity para fugir de Nova Iorque e poder fazer a diferença, mas que parece ainda estar a conhecer os cantos à casa. Ele quer fazer o correto, ele quer ser a voz da razão, mas nem consegue atender o telefone certo. Ele quer ser ouvido, mas rapidamente percebe que Amity tem dinâmicas próprias, é uma cidade de verão e que o seu Mayor – uma brilhante personagem, a personificação pura e honesta do capitalismo selvagem que nos consome – está mais preocupado com a economia local – nas vésperas de um grande feriado nacional – do que com uma morte que pode ou não estar relacionada com um ataque de tubarão que, mesmo a confirmar-se, pode ter sido apenas um acontecimento isolado.
A praia. A praia é tão importante para Jaws quanto Jaws viria a ser importante para as nossas praias. É aí que sentimos a alma daquela vibrante comunidade local. É aí que percebemos os seus comportamentos e atitudes. É aí que Spielberg – um génio – por vezes até nos corta qualquer artificio sonoro para ficarmos apenas com o som ambiente. Onde ele nos mostra a preocupação de Brody que não tira os olhos da água enquanto todos se divertem. Tudo isto contribui para uma tensão sem igual, uma tensão que nunca se viu antes e, provavelmente, nunca mais se verá num filme do género, sabendo que o perigo está ali mesmo que não o vejamos. A seguir? Mãe do céu! Um ataque bastante sangrento a uma criança – nem a maioria dos slashers têm coragem de o fazer com crianças! – e um dos mais bem executados dolly zoom da história do cinema. A mãe em pânico grita, ainda não caiu em si, não quer acreditar. A cena corta e discutem-se…consequências financeiras!
Sim, Jaws é um importante estudo social. Sobre saúde pública vs interesses económicos. Até onde iremos permitir que o capitalismo consuma todos os nossos valores? Será que o lucro importa mais do que a vida humana? No meio de discussões sobre o que fazer – com Brody a ser quase o único a querer interditar as praias – somos introduzidos, através de um incómodo ranger de unhas num quadro, a Quint, um caçador de tubarões que promete fazer o serviço rápido, mas…cobrando o seu devido valor. Mais uma vez, o dinheiro.
A próxima grande personagem a ser apresentada é Matt Hooper, o oceanógrafo que vem salvar o dia, que seguimos desde o momento em que pisa a ilha pela primeira vez. Ele vem com a sua sabedoria e conhecimento teórico. É introduzido quando deve ser para precisamente numa das cenas seguintes esfriar o entusiasmo de todos. Ele sabe que o tubarão capturado não é…bem o nosso predador. A Hooper falta-lhe falar a linguagem do povo, falta-lhe praticidade, mas tem o conhecimento académico que tanto importa quando conciliado a outras mais sabedorias. Logo a seguir outras das cenas mais marcantes do filme: A chapada da mãe que perdeu o seu filho. A chapada em cheio na cara de Brody que reage não reagindo, sabendo e reconhecendo que ele deveria ter feito mais para evitar a situação, pois sabia que um tubarão por ali andava. Afinal ele é o responsável pela proteção daquela comunidade e como o próprio viria a dizer “eu posso tudo, sou chefe da polícia”, numa das várias cenas em família que nos aproximam tanto desta personagem que quase sentimos pertencer àquela mesma casa. O nosso herói tem falhas, não é perfeito. Como todos os heróis de Spielberg, como todos os heróis da nossa vida.
O 4 de Julho chega. O mayor levou a melhor, as praias reabrem, o sol brilha, turistas enchem a cidade. Brody nunca se sentindo seguro com o que se passa procura a criatura, mas no sítio errado. Ela ataca onde não se espera, mas volta mesmo a atacar. Brody tem agora provas que não é um louco obcecado por medos irrealistas. Está do lado certo da história e é tempo de ir à guerra. Vemos um lado humano de Larry, o Mayor, o mesmo percebe onde se meteu e a custo dá a autorização financeira necessária para a equipa que vai à caça de quem ainda não se cansou de caçar.
O terceiro ato. O ato que eu aprendi a amar por tudo o que faz de diferente e por tudo o que ele representa. Já não é sobre aquela pequena vila piscatória e turística. Continua a ser sobre pessoas, sobre personalidades mas é também sobre laços, sobre desconfianças ultrapassadas e sobre trabalho em equipa. Três personagens. O chefe Brody que sempre quis fazer a coisa certa mas que raramente foi ouvido e que até nada parece talhado para a situação – afinal pediu transferência para uma ilha não gostando sequer do mar e agora é no mar que tem a missão da sua vida. Quint, o caçador de tubarões profissional, que quer uma enorme recompensa pelo trabalho e que – sempre com um ar sisudo de poucos amigos – despreza o trabalho de tudo e todos, principalmente de jovens que acham que tudo sabem. Por fim, Hooper, o oceanógrafo que parece ter toda a teoria para a ocasião, mas a quem lhe faltam muitas das sabedorias práticas da vida. Um cocktail explosivo em busca do assassino mortal.
As tensões evoluem e o conflito – Hooper e Quint sempre andaram às avessas – que poderia ter escalado para uma medição de egos masculinos transforma-se em algo diferente. No entanto, sozinhos em alto mar e rodeados por um assassino que todos respeitam, os três homens percebem que a melhor forma de capturar a besta é trabalhando em conjunto, utilizando os pontos fortes de cada um. Poucas cenas têm o impacto na história do cinema como aquela em que – já com uma boa dose de álcool em cima – os três falam das suas feridas. Das visíveis e das não visíveis. Percebemos as motivações de cada um. Percebemos a história, as pessoas que passaram pelas suas vidas, o que as tornou naquilo que hoje são. Elas também percebem o momento e percebem-se a si mesmas. A fase da descoberta abre as portas necessárias para que a soma das partes possa bater o inimigo. Eles sabem que precisam de “um barco maior”, mas também sabem que é com o que têm que devem enfrentar o inimigo superior. “Smile, you son of a”…!, este é O filme.
O melhor filme do género, mas, acima de tudo, um enorme filme sobre pessoas. Jaws mudou o cinema, mas não só, sendo um fenómeno inigualável da cultura pop que se perpetuou no tempo. Arrastou multidões como nunca antes tinha acontecido e entrou na vida de todas as gerações futuras, sendo hoje tão atual e relevante quanto o foi no seu lançamento. Passem 3 meses numa praia e digam-me que não viram qualquer referência a Jaws: seja uma toalha, uma t-shirt, um calção, uma brincadeira ou o tema sonoro. Direi que mentem.