Revisualizando: JCVD (ou o melhor filme da vida de Van Damme)

Tenho uma estranha relação com a morte. Quando fui verdadeira e directamente afectado pela morte, sabia muito pouco sobre a vida. Continuo a aprender sobre viver e os vivos mas foi com a morte que me esclareci sobre viver. Jean-Claude Van Varenberg, o Músculo de Bruxelas, expõe-se como nunca antes e jamais visto em JCVD. A morte do ego, “cinematografada” da pessoa que menos se espera é um bálsamo de escape e empatia que brada afonicamente aos 7 ventos de uma sala fechada estanque: a morte não é o fim. É um processo.

Desde que sei falar que pessoas têm nascido e morrido, na minha família e outros círculos. Desde que sei responder às pessoas de volta em diálogo que me foi explicado o conceito de morte, em diferentes iterações, com diferentes densidades, com diferente profundidade. A morte é como poker: simples de compreender como funciona, mas leva uma vida a dominar fundamentalmente. Esse domíno engloba algo mais que o racional e tácito cognitivo. Envolve o emocional e socio-afectivo, pois claro.

Desde que me lembro de prestar atenção à TV, assisto a filmes de acção. Porradaria não-vinculativa, filmada e estruturada onde sem saber ler nem escrever, estava bem claro quem era o herói e o vilão. O que tinha de ser feito e de que modo era necessário ser feito. Van Damme é icónico disto. Van-Damme é como poker: simples de acompanhar como funciona, mas leva uma vida a desvincular-se disso. Essa desvinculação engloba algo mais que do rotativo à cabeça e espargata máscula à cocaína e outras substâncias boémias. Envolve um ser humano, com família, provações, excessos, glamour, ressaca, realidade.

JCVD é uma exploração em formato filme do homem Jean-Claude Van Damme, explorado pela indústria e que achou ter colhido todos os frutos, bons e maus da mesma, que busca a contrição dos seus actos, posturas, mais falhas que acertos, numa roupagem de comédia dramática que dá muito mais que uma coisa diferente de si, do que é cinema, do que é representar quando o protagonista é ele próprio num dos monólogos mais reais e emocionantes de toda a minha vida como espectador.

A morte é um processo.

A morte do ego é um processo.

A morte é conclusiva da vida, para quem morreu, pois claro. É um processo para os que ficam e reavaliam o que viver, sobre o que viver, porque viver e o que poderão ter retirado por oferta/apropriação/usucapião/osmose de quem morreu.

A morte do ego é a manifestação consciente do processo da morte biológica de parte fundamental de cada um de nós, uma eutanásia da alma, uma quimioterapia da existência do indivíduo. É um processo doloroso, de dor diferente porque na verdade, ninguém se importa. O ego é individual. A sua morte tem de ser individual primeiro ou em último, mas pertence apenas ao indivíduo.

Quer se mate o ego ou não, quer se reformule “morte do ego” para “humildade”, no fim a morte é conclusiva da vida. O processo prossegue para os que ficam.

Tenho uma estranha relação com a morte. Entendo logicamente que o que é vivo, encontra-se com ela e deixa de o ser, para si e para todos. Amar devotamente quem, entretanto, lá morra é devastador. Amar memórias dói. Porque memórias são o que resta de quem era e já não é mais.

E a devastação de nos amarmos, amarmos o nosso ego, para lá entender que temos de o matar?

Ninguém deveria sofrer por entender que é o próprio pelotão de fuzilamento de parte de si. Mas é inevitável. O que mexe com as fundações de qualquer estrutura, coloca a integridade da estrutura em causa. É incontornável.

Van Damme entendeu isso. No apesar dos apesares, numa vida vivida de fama e estrelato, Van Varenberg lá entendeu isso. E decidiu mostrar ao mundo que entendeu. E fez-se entender com o meio que lhe elevou o ego e status a camadas insufladas de névoa tóxica envolvida em lantejoulas. É irónico, no mínimo. É poético, francamente. É verdade, nuclearmente. O contexto do filme? Um assalto a um banco à mão armada. A morte física à espreita. A morte do ego consumada. Nada é por acaso. Nada neste filme, na vida, na morte e na morte do ego, é por acaso.

O acaso é estarmos vivos.

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