Não é sobre o caminho. Não é sobre o destino. Não é sobre quem caminha. É sobre caminhar.
Não adianta. Não há alternativa ao falhanço, ao fracasso, à rendição que não seja caminhar. Persistir. Andar. Frente. Sempre.
Anatomicamente tornámo-nos bípedes para caminhar para a frente. É incómodo caminhar para trás, é inconveniente caminhar lateralmente.
Antropologicamente, as espécies evoluem. Não se observa retrocesso. Observam-se fenómenos de readaptação. É um avanço.
Filosoficamente, estudamos e reflectimos sobre o desenvolvimento do pensamento, da psique, da existência, pré-existência, pós-existência, do indivíduo para si, do indivíduo para o todo e do todo para o indivíduo. Seja esta disciplina a antropologia da mente.
The Road é simples e directo. A simplicidade é aterradora.
Título: “A estrada”.
A nossa caminhada é delimitada pela nossa biologia de finitude predeterminada por omissão, com variáveis que a posterga ou apressa.
A nossa caminhada não é linear. Independentemente de outros como nós terem passado pelo que passamos, o facto de sermos nós a caminhar faz com que o percurso seja só nosso e a nós se deve a imposição de o transitar. Terminar a caminhada não é desistir. É caminhar para um resultado possível conhecido da mesma. É ainda e também caminhar. “O destino destina, mas o resto é comigo” – Miguel Torga.
A caminhada do Homem e Rapaz tem a sua nuance. Só a eles diz respeito. Os obstáculos são de todos, mas quando este grupo é travado por eles, só a eles cabe a ultrapassagem e/ou contorno desses obstáculos.
Personagens: “homem” (Viggo Mortensen), “mulher” (Charlize Theron), “rapaz” (Kodi Smit-McPhee), “velho” (Robert Duvall), “veterano” (Guy Pearce), “ladrão” (Michael Kenneth Williams), “membro de gang” (Garret Dillahunt), “arqueiro”, etc.
Assumamos que a estrada é igual para todos.
A estrada é imutável? Sim.
Todos que a encaram ou são forçados a encarar vêm-na como igual? Provavelmente.
Todos caminham-na de igual forma? Jamais. Roça a improbabilidade estatística.
Isso faz com que a forma de caminhar determine a caminhada? Rebatível.
“Se uma árvore cai na floresta mas ninguém a ouve, fez barulho?” Sim. Sabemos que fez. Lá porque não ouvimos, não significa que não tenha sido barulhento. Mas o facto igual para todos não significa que seja percepcionado de igual forma por todos.
Nuance, percepção, interação e contexto fazem com que seja irrelevantemente igual se a estrada seja igual mas caminhada de forma diferente ou diferente mas caminhada de forma igual.
As interacções das diferentes personagens relegam-nas a encarar o que de bom, mau, menos bom e mais mau no meio envolvente fazem da estrada. Optar é caminhar. Optar por não caminhar é avanço. Não é cinético, não é vectorial, mas é avanço. Optar por recuar é um avanço. Talvez a finalidade em recuar é diferente da finalidade em avançar, mas ambas caminham para um fim. Finalidade e fim são distintos. Uma é projectada e outro é atingido.
Não obstante, impelem-se a algo, propõem-se algo, caminham para algo mesmo que por algo a evitar algo.
Enredo: “mundo pós-apocalíptico, homem defende rapaz enquanto viajam lentamente até ao mar”.
O que pode ser um exercício reflexivo, exploratório e análogo às vidas de cada ideal par de olhos que o visualize, tem, absorto disso, uma história em que dois indivíduos em sinergia caminham para um objectivo em comum, lidando com os obstáculos do caminho, crescendo e fortalecendo-se e aos que lhes prestam auxílio, por forma a satisfazer o objectivo.
Há de tudo o que se pode extrair neste filme. A observação da condição humana face a uma adversidade transversal a todos, dentro das suas individualidades e como estas se relacionam em conflito, cooperação, persistência de individualidade e superação ou recuo, um thriller tenso de um homem e um rapaz contra um mundo fragmentado, até onde está um pai disposto a ir para proteger o seu filho e levá-lo a bom-porto.
Filmografia: minimalismo, abandono, desmazelo, tensão, opacidade, amplitude, slow-burn.
A desolação pode ser captada por diferentes formas. A optada aqui foi o minimalismo. Menos é mais. Há apelo aos sentidos quando se tenta captar e encapsular o nada. Um nada inorgânico, mas natural de displicência das infraestruturas. O tom sépia e castanho dominante por toda a paisagem e luminosidade que pautam os ambientes claros e escuros contribuem para uma ferrugem atmosférica que nos torna observadores de uma biosfera degenerada em que os organismos vivos se digladiam por adiar os seus fins.
Sonoplastia: ambiente, opacidade
Como captar sonoramente o nada é algo de tão elementar como de delicado, uma das formas mais utilizadas é casar silêncio com algum white-noise ou frequências baixas que dão fundo ao corpo sonoro e planos abertos ou sequências sem movimento.
The Road faz disto, mas não procura ser pesado de ponta a ponta e indiscriminadamente calado ou quieto. Há disso. Há elementos sonoros que adensam o coração do filme, há música para diferentes temperaturas e emoções.
The Last of Us é uma gota no oceano que costeia o destino de Homem e Rapaz. Mais respeito, por favor. Para todo o ícone, há um Pai.