Nos tempos que correm é bastante comum ouvir que “o terror está a perder a piada com tanto wokeness” ou que “o terror hoje tem sempre que meter política e racismo ao barulho”. No entanto, essa afirmação é facilmente destruída se conhecermos a história do terror e estudarmos alguns dos seus principais criadores. Hoje abordarei casos de três génios do terror, talvez os três nomes maiores da história do género em língua inglesa: George A. Romero, John Carpenter e Wes Craven. Haveria muito para falar de cada um deles, mas resolvi simplificar: um filme por realizador! Vamos perceber que todos eles incorporaram temas sociais e políticos nos seus filmes e que a mensagem nunca foi tão subtil quanto isso! Será que o terror é hoje mais político do que o era no passado ou será que hoje – e com o “auxílio” das redes sociais – há certas pessoas que se incomodam mais com mensagens que o terror sempre se preocupou em passar?
George A. Romero – A fazer terror social desde a década de 60!

George A. Romero não foi o primeiro a utilizar zombies no cinema, mas foi o primeiro a mostrar ao mundo zombies como nós os conhecemos, atacando em grupo, quase cegamente, existindo regras específicas para os eliminar, pois não parecem cair com qualquer coisa. Por essa razão o mestre é conhecido como o criador do género e o pai dos mortos-vivos modernos. A primeira obra de Romero, um clássico intemporal, chegou em 1968, com o título de Night of the Living Dead.
Nesse filme Romero mostrou desde logo traços do comentário social e político que viriam a marcar toda a sua carreira. É importante aqui colocar a obra no contexto da época do seu lançamento. O filme foi lançado no final da década de 60, uma década especialmente violenta e complexa nos EUA, onde vários confrontos sociais, manifestações e assassinatos marcaram a escalada dos conflitos raciais no país. Apenas nessa década as leis de Jim Crow desapareceram e Romero não poderia ter sido mais claro na mensagem que queria passar. No papel principal, Romero colocou Duane Jones, um homem negro! Claro que isto não era nem um pouco comum nesses tempos e, embora Romero tenha afirmado que a escolha de Duane tenha tido tudo a ver com o mérito do ator e não com a raça – o que também pode ser visto como uma chapada de Romero ao dizer claramente a quem o ouve que negros podem ser tão bons ou melhores do que brancos em qualquer área da sociedade – fazê-lo no tempo em questão seria sempre entendido como tendo uma enorme componente de mensagem social.

Mas Romero ainda foi mais longe com Duane. E quem não viu o original talvez deva evitar ler o parágrafo seguinte.
No final de Night of the Living Dead, Duane conseguiu o impensável. Saiu vivo daquela noite, não foi morto por nenhum zombie, conseguindo através de um plano inteligente matar e/ou afastar todos. Houve quem contra ele fosse, mas no final ele provou que sempre teve razão. Só que no último plano do filme, Romero mostra-nos Duane a sair de casa e a ser implacavelmente abatido, e de bastante longe, por um conjunto de polícias rednecks, que nem quiseram saber se Duane era um zombie ou não. Para eles, ele era. Para eles, ele só poderia estar do lado errado da história. Esse final faz-nos, infelizmente, lembrar vários acontecimentos recentes e pergunto-me eu: se fosse um realizador negro, em 2022, a filmar um final destes, quantas pessoas não iriam acusá-lo de ser um final demasiado woke? O próprio Jordan Peele faz uma referência clara a este final em Get Out, mas subvertendo as expetativas.

O início de Romero foi assim, mas o génio nunca deixou de incorporar temáticas políticas e sociais nas suas obras, sendo mesmo conhecido como “o rei do terror político”. Numa entrevista concedida em 2010 à revista Time, Romero disse mesmo que “se há algo na sociedade que eu queira criticar, posso trazer os zombies de volta”. Foi assim em toda a sua saga dos mortos. Desde o consumismo, à atração pelo poder bélico, do populismo em detrimento da ciência, passando pela luta de classes, o poder dos media e os efeitos das redes sociais, a lenda nunca se cansou de mostrar o que pensava em relação a este mundo. Nunca foi sobre zombies.
John Carpenter – Eles querem-nos divididos

Se acham que John Carpenter apenas nos deu Halloween e The Thing, peço que olhem com mais atenção para uma das carreiras mais impressionantes de Hollywood. Misturando muitas vezes o terror com a ficção científica, John Carpenter tem habitualmente muito para dizer. Se em Escape from NY, o autor imagina um futuro distópico e negro para a América, tornando-se num dos mais duros e policiados regimes fascistas do mundo, sendo um filme muito analisado do ponto de vista político, talvez o seu maior statement em termos sociais seja o filme They Live.
Sabem aquele ódiozinho de estimação que muitas pessoas parecem nutrir pela palavra woke? They Live é o maior exemplo da representação de alguém a pedir para que, literalmente, abram os olhos. No filme, John é um trabalhador comum que luta para sobreviver mas que um dia descobre uns óculos que fazem-no perceber que a realidade não é nada daquilo que ele pensa que é. Além destes óculos mostrarem que há quem não seja igual a nós e esteja entre nós apenas para nos dividir – representados como criaturas não-humanas – são também importantes ao mostrar todas as mensagens subliminares que nos são passadas diariamente, seja na televisão, em anúncios, montras de lojas, cartazes ou simplesmente na escolha de certas cores. Carpenter tenta assim dizer-nos que todos nós precisamos de usar os tais “óculos mágicos” e decifrar o poder oculto por detrás de muitas mensagens, entendendo que muitos dos que estão entre nós têm enormes vantagens em espalhar o ódio, o terror e o caos, pois uma sociedade dividida é mais fácil de dominar.

Mas John Carpenter vai ainda mais longe dizendo-que que as pessoas em posição de poder sabem do que se passa e estão confortáveis com a situação, pois o que eles mais desejam é estarem no topo da estrutura da sociedade, mesmo que esta seja apenas uma sociedade de fachada, controlada, no fundo, por uma espécie mais desenvolvida. Muitas vezes, estes mais ricos são representados como elementos da espécie extra-terrestre, mas, por vezes, são apenas humanos, iguais a nós próprios, que “venderam a sua alma” a troco de bens materiais e aparente poder. They Live é um filme de culto, um filme com um excelente ritmo, provocador, com alguns momentos cómicos, mas é, acima de tudo, um filme muito forte na sua mensagem e que sabe o que quer realmente passar.
Recentemente, em 2015, o autor foi ainda mais longe nas suas posições, ao afirmar à Yahoo News que “o filme não é ficção científica, é um documentário”, mostrando claramente o que pensa, sustentando em 2017, no Twitter, que “o filme é acerca do capitalismo selvagem”, exigindo a certas figuras do panorama político que deixem de utilizar a mensagem do filme para proveito próprio quando o mesmo tem uma mensagem totalmente oposta. Como o próprio Roddy Piper – ator do filme – chegou a afirmar num making-of de They Live: “todos os aliens são membros da classe mais alta da sociedade, ricos que exploram a classe média, tornando-os a todos mais pobres”. A mensagem não poderia ser mais clara: Eat the rich!

Wes Craven – Os que vivem debaixo das escadas

O pai de Scream e A Nightmare on Elm Street pode não ter sido demasiadamente político nessas obras (embora o tenha sido, aqui e ali na construção de várias personagens e cenas), mas nunca negou o que pensava em relação à sociedade. Se em The Serpent and the Rainbow Craven faz críticas claras à política externa norte-americana e suas intervenções em países terceiros, bem como ao modo de vida daqueles que são controlados em regimes ditatoriais – a clara analogia com zombies! – é em The People Under The Stairs, um filme que mistura terror e comédia, que vemos Craven abraçar a crítica social de forma ainda mais clara e direta.
Os primeiros dez minutos são o suficiente para afastar qualquer pessoa mais sensível a questões sociais ou políticas.
“Será que o senhorio não sabe que a mãe está doente…ou que Ruby está gravida?”
“Sim, claro. Ele sabe. Ele só não quer saber”
A frieza com que esta aparentemente inofensiva troca de palavra nos dá uma bofetada na cara é o mote para tudo o que está para vir.

Gentrificação, capitalismo, o lucro à frente da saúde e vida humana e, pelo final desta introdução ainda nem sequer entrámos na casa do casal que praticamente é o dono de todo o bairro. Acontece que este casal bem-sucedido financeiramente, rapta e aprisiona crianças, maltrata-as, abusa das mesmas, tira-lhes membros do corpo e até chega a matar. Mas, claro…a polícia de nada desconfia, pois estamos a falar de um bem-sucedido casal branco e, portanto, claro que não podem ser raptores ou assassinos! A determinada altura há um diálogo de poucas palavras entre o a mulher e um dos polícias que muito diz:
“ É como se nós fossemos prisioneiros…e os criminosos andam por aí à vontade”
“Compreendo o que queres dizer”, responde o polícia concordando e olhando em volta com um ar de desprezo e repulsa pelo bairro que teima em continuar a existir.
É também impossível ignorar o background que temos mais tarde daquela família branca e disfuncional vista pelos olhos da família de negros que acompanhamos (e a coragem de Craven em colocar uma criança negra como personagem principal em 91l?!). Basicamente é nos explicado que o negócio da família dona de meio bairro começou enganando os outros – ainda mais no negócio dos funerais! -, cresceu para o ramo imobiliário, onde começaram a fazer muito dinheiro ao desalojar pessoas de suas casas e quanto mais dinheiro foram fazendo, mais avarentos se tornaram. E…enquanto mais avarentos se tornavam, mais malucos se tornavam. É difícil alguém ter dúvidas do quão socialmente importante este filme é, mas se alguém as tiver, veja apenas a sua cena final: milhares de notas de dólares voam da casa do casal (que são…irmãos!), deixando de estar nas mãos de dois que tudo controlavam, passando para as mãos do povo, o que leva a um clima de exultação e festa geral. O mal caiu, o povo pode ser finalmente livre!
Uma crítica demasiado direta ao capitalismo selvagem? Sim, claro. O autor nunca escondeu o que queria dizer com este filme. Numa entrevista em 1991, Craven chegou ao ponto de dizer que toda aquela horrível casa representava a sociedade norte-americana. Ouch!
E agora, ainda pensam que o terror que se preocupa tematicamente com questões sociais e políticas é uma moda moderna?