Antes de assistir a A Thousand and One para escrever esta resenha, conferi o filme Retour à Séoul (Regresso a Seul), que compartilha com o primeiro assuntos como adoção, pertencimento e identidade, além de também apresentar grandes conexões de suas personagens com a música. A experiência foi interessante, e perceber a influência dos diferentes contextos sociais na abordagem de cada obra foi um exercício intrigante.
A ex-presidiária Inez sequestra seu filho do sistema de adoção, visando criá-lo ilegalmente. Pulando de abrigo em abrigo, a dupla procura por um lugar para chamar de lar, para poder desenvolver melhor sua relação, e estabelecer uma família digna.
Inez é uma enorme personagem, mas deixemos para falar sobre ela mais à frente. Para desenvolver os paralelos entre A Thousand and One e Retour à Séoul, é preciso falar de Terry, o filho sequestrado. Terry, assim como Freddie, protagonista de Séoul, é uma pessoa quebrada, incapaz de se sentir realmente pertencente a qualquer lugar ou qualquer um, devido ao abandono que sofreu. Porém, diferente de Freddie, que é uma garota burguesa de pele clara, Terry é um garoto negro periférico. Freddie sofre com grandes dilemas psicológicos e relacionais que garantem muita intensidade a toda sua jornada. Terry, por outro lado, além de lidar com dilemas semelhantes, tem de enfrentar a ingratidão de viver lutando contra a pobreza extrema, e a opressão de uma sociedade preconceituosa que odeia a ele e seus semelhantes por conta da cor de suas peles.
O cenário em que Terry se encontra é muito mais desfavorável que o de sua contraparte cinematográfica, seu status social mais frágil e sua etnia um alvo em suas costas. Com tudo isso sob seus ombros, o menino não vê outra escapatória senão se fechar para tudo, e introverter-se em resposta a uma realidade que parece impossível de ser superada. Já para Freddie, as opções são mais amplas, mais permissivas. A moça é extrovertida, explosiva, e contagia a todos a sua volta, seja positiva ou negativamente, e assim é, pois sabe que, ao enfrentar todos, se tudo correr mal, tem os meios necessários para sumir para qualquer lugar que desejar, e voltar algum dia apenas se assim quiser. Ambas personagens são diferentes reflexos de um mesmo prisma, atingido por divergentes feixes de luz, oriundos tanto da miséria, quanto do privilégio.
E isso se reflete também na banda sonora, e em como essas personagens se relacionam com a música. Em Retour à Séoul, Freddie se perde em meio ao caos sonoro, e se mistura com a música, que usa como máscara de euforia para disfarçar suas inseguranças e fraquezas. Em A Thousand and One, os ritmos urbanos periféricos rodeiam as personagens a todo momento, confortando-os em seus momentos difíceis, e incentivando-os como se estivesse ali para lembrá-los de quem são e do seu valor. Terry tem uma relação intensa com a música negra. Para ele, a música forma um laço fortíssimo com as pessoas que ama, e com sua própria identidade. A arte que Terry consome e vive é um protesto em nome de sua existência e presença cultural. É o caminho que encontrou para descobrir a si mesmo e compartilhar com os demais tudo o que tem a expressar.
Terry é uma grande personagem, e dois de seus três intérpretes são extremamente competentes. Aaron Kingsley Adetola, que vive o menino em sua infância, e Josiah Cross, que o vive em sua adolescência, são ótimos. Trazem tridimensionalidade e complexidade para Terry, convencendo muito quando estão em tela. No entanto, o mesmo não se pode dizer de Aven Courtney, que vive Terry em sua pré-adolescência. O ator apresenta um trabalho pouco expressivo e bastante monótono, que destoa muito de qualquer outra prestação de destaque do longa. Uma grande pena.
Mas o grande destaque de A Thousand and One fica com Teyana Taylor, que vive Inez, a mãe de Terry. Desesperada, Inez nos conduz através do filme por boa parte de sua duração, até entregá-lo às mãos de seu filho. Porém, mesmo quando já não seguimos mais seus passos com afinco, Inez marca presença com toda a garra, dor e amor que sente. Quando recebe carinho, quando é maltratada, quando comete crimes, ou quando é vítima de misoginia: Inez sempre tem uma resposta à altura para tudo, seja ela racional ou não, correta ou falha. Ela é intensa, vibrante, e passa longe da perfeição. Uma personagem linda, vivida com muito calor e devoção.
Ganhando muito quando analisado junto do excelente Retour à Séoul, A Thousand and One se faz um ótimo exercício de observação social e cinematográfica. Mas a verdade é que se trata de um grande filme à partir de qualquer ótica. Brutal e ambíguo, é essencial para qualquer um que receba e leia um filme para além de seus códigos de linguagem e duração.