Verdades, meias-verdades e tudo o resto no incrível Anatomie d´une chute

Se alguém me dissesse que Anatomie d´une chute iria voltar a colocar P.I.M.P. de 50 Cent na minha playlist, eu, provavelmente, não fazia ideia de como reagir. Foi inesperado ver a presença do tema num drama judicial francês e ainda mais inesperado foi ver a sua preponderância até na abordagem de alguns dos temas centrais do filme. Mas apesar de aparentemente assim o parecer, Anatomie d´une chute é tudo menos um comum drama judicial sensaborão.

Admito que este possa ser um daqueles filmes recebidos de forma muito diferente de acordo com o envolvimento que possam ter com a obra. Estou aqui a utilizar floreados mas o que eu quero dizer é que a vossa experiência será muito afetada pelo quão este filme conseguirá sugar-vos para dentro dela, das suas personagens e suas nuances. Como objeto principal está uma misteriosa morte. Numa isolada vivenda, um rapaz com visão bastante reduzida sai para passear o seu cão e quando regressa encontra o seu pai caído no solo coberto de neve. A queda de um piso superior foi fatal. A mãe, surpreendida com os gritos, aproxima-se e vê o corpo do marido caído. Ela é também suspeita de uma morte que poderá – ou não – ter tido mão criminosa. 

Há várias formas de pegar nesta história. Poderia ter sido um thriller investigativo à lá David Fincher, mas não é. Justine Triet sabe muito bem o que quer retirar dela. Ela sabe que quer ver isto através dos olhos das pessoas envolvidas e faz um assombroso trabalho nesse papel. Mais do que a busca pela verdade, o guião interessa-se mais pela forma como as pessoas vão reagindo a pequenos pedaços de informações a que vão tendo acesso. Interessa-lhe também demonstrar a complexidade das relações humanas e o caminho que leva a certas decisões na vida de casais que nunca poderão ser compreendidas por um público externo recheado de preconceitos e de julgamentos precipitados. Toda a atenção mediática à volta do julgamento que ocupa a quase totalidade dos dois últimos atos deste filme demonstra que nem sempre a verdade é o que importa. Demonstra também que o julgamento de um determinado momento ou ação é menos importante para a audiência do que um julgamento de caráter sempre à espera de ser feito. 

A forma como tudo isto é filmado surpreendeu-me bastante. Triet não procura uma abordagem clássica e confortável. A forma como a câmara é posicionada – o chamado blocking é fenomenal, fazendo-nos sentir quase como intrusos – ou a forma como se mexe – aproximando-se de forma instável das personagens também elas instáveis emocionalmente – é de uma mestria ao alcance de poucos. Não é que poucos o saibam tecnicamente fazer. É que poucos o coneseguem fazer tão bem, de forma tão impactante, suscitando a reação emocional que se pretende da audiência. Refiro-me, por exemplo, a uma cena em que um terceiro elemento discursa referindo-se ao falecido. A câmara primeiro foca Daniel (Milo Machado Graner), o filho, visivelmente incomodado, mas querendo escondê-lo para si. Depois foca-se em Sandra (Sandra Hüller) e o mesmo se percebe dela, sendo que a mesma procura encontrar com o olhar o seu filho. Tocou-me. Emocionou-me. Deitei lágrimas. O primeiro plano ali não era o do díalogo exposto, era de como aquilo estava a afetar tanto aquelas pessoas. 

O que Milo Machado Graner – uma das mais impressionantes atuações de um jovem ator – e, principalmente, Sandra Hüller fazem neste filme é sensacional. Hüller traz uma panóplia impressionante de armas representativas que funcionam sempre de acordo como o momento em que as mesmas são postas em prática. Quando procura seduzir, quando procura lutar, quando se procura abrir, quando se procura fechar, quando se sente invencível, quando se sente penetrável. Todas as suas micro-expressões e todo o seu comportamento corporal diz-nos tudo o que tem para dizer e devo dizer que coloco esta atuação no melhor que alguma vez vi. Ponto. Arrepiante. 

Com isto até tenho medo de desmerecer os atores secundário, o que seria um desfavor, pois todos estão a um belíssimo plano. Além de jovem já referido, Swann Arlaud como o eloquente advogado de defesa e amigo – que se torna cada vez mais próximo – de Sandra. Antoine Reinartz como um fortíssimo procurador-geral com um discurso tão violento quanto bem trabalhado. Samuel Theis quando vamos ao passado num incrível argumento com a personagem principal. E já que falamos dessa cena…que ENORME cena de discussão na cozinha, tão bem trabalhada, tão cheia de informação, tão cheia de sentimentos díspares, de sentimentos reprimidos e tão bem editada a um ponto em que apenas nos resta abrir a boca e admirar tamanha obra de arte. Afinal, é de várias quedas que este filme nos fala e nenhuma cena poderia demonstrar melhor a maior queda tão bem quanto aquela cena. 

Ainda que este não seja o filme mais fácil – pede muito do espetador principalmente até ao final do primeiro ato -, a forma como tudo se desdobra, a forma como desenvolve o seu guião e os caminhos e destinos da sua abordagem temática são absolutamente fascinantes. É já um dos meus filmes favoritos passados maioritariamente num tribunal – juntando-se a obras como 12 Angry Men, Primal Fear ou A Few Good Men – e é um dos filmes mais realisticamente humanos na sua abordagem a factos que desconhecemos. Sem a ambição de uma vistosa espetacularidade cinemática, mas com muito para trabalhar a nossa massa cinzenta sempre que nele pensarmos. 

O que se passa dentro de cada casa só é realmente conhecido por quem lá vive. As verdades. As meias-verdades. Anatomie d’une chute é um magnífico exercício realístico de busca por uma verdade que nem sempre é alcançável, obrigando todos os outros a navegar numa zona incerta mas necessária de decisão consciente. Sandra Hüller tem uma das melhores interpretações da história.


Anatomie d'une chute
Anatomia de uma Queda

ANO: 2023

PAÍS: França

DURAÇÃO: 151 minutos

REALIZAÇÃO: Justine Triet

ELENCO: Sandra Hüller; Swann Arlaud; Milo Machado-Graner; Antoine Reinartz; Samuel Theis; Jehnny; Beth Saadia Bentaieb

+INFO: IMDb

Anatomie d'une chute

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