Em 2021 foi Branagh e Sorrentino e este ano ainda teremos Spielberg e Iñarritu. A febre de cineastas a explorar o “seu eu” tem marcado o cinema e James Gray não quis ficar de fora.
Todos encontramos sentimentos fortes quando vasculhamos a nossa infância, o nosso crescimento e a nossa adolescência. Essas memórias estão alocadas no nosso cérebro, no nosso subconsciente e quando as visitamos encontramos pessoas diferentes, encontramos sonhos, receios e acontecimentos que, em retrospetiva, nos marcaram para toda a vida. James Gray vai em Armaggedon Time até ao seu passado, até a momentos que o terão marcado tanto que decidiu transformá-los numa obra cinematográfica.
Ad Astra foi o anterior filme de James Gray. Um filme divisivo, certo, mas eu conto-me entre aqueles que adoraram a obra, a sua ambição, a sua beleza no ecrã e muito do que procurou dizer. Sabia que Armageddon Time – apesar do seu título – nada teria de ficção científica e que seria uma obra totalmente diferente, mas contava com Gray para nos dar algo único que justificasse a sua existência para além de “o projeto pessoal de James Gray”. Nesse campo, Armageddon Time é um filme que, apesar das suas qualidades, me deixou a desejar mais.
A história é bastante contida. Paul – o menino que representa a infância do realizador e escritor – inícia o 6º ano numa escola pública e rapidamente se torna amigo de um menino afro-americano chamado Johnny. O filme acompanha esta relação, bem como a de Paul com os seus familiares mais próximos, durante as…semanas seguintes. O horizonte temporal não nos é apresentado de forma taxativa, mas á fácil calcular quanto tempo vai desde o habitual início do ano letivo norte-americano até à vitória de Reagan nas eleições presidenciais norte-americana a 4 de Novembro, a última cena do filme que, obviamente, não está aqui por acaso, sendo que a política e as questões sociais da época estão umbilicamente ligadas ao que o filme procura representar. Muita coisa aconteceu durante essas semanas para uma criança de 12 anos e isso justifica porque é que Gray se terá focado nesse periodo marcante para si. No entanto, esses acontecimentos parecem também sobredimensionados – naturalmente pela importância que damos à nossa infância – e o espetador comum pode muito bem questionar a sua dimensão cinematográfica.
A amizade entre Paul e Johnny proporciona alguns dos melhores momentos deste filme. Percebe-se a dinâmica do duo, percebe-se que é uma amizade forte mas que, provavelmente, tem poucas pernas para andar, percebe-se que o que une estes rapazes – os seus sonhos – deveria ser muito superior àquilo que os separa. Os dois jovens atores – Banks Repeta como Paul e Jaylin Webb como Johnny – estão à altura do desafio e brilham mais do que muitas das estrelas que compõem o restante elenco. É através desta amizade que o filme melhor retrata as disparidades sociais e raciais de uma sociedade estupidamente desigual até para quem nunca teve a oportunidade de ser igual, um tema que nos acompanha ao longo de toda a obra, andando de mãos dadas com as desigualdades sociais – e diferenças de tratamento – que são em muito perpetuadas por quem mais poder e privilégio tem.
Já quando falamos das dinâmicas familiares, o filme provoca sentimentos mistos. Se é de elogiar o facto de Gray não ter procurado dourar a pilula, dando-nos uma família que parece real, em que certas personagens têm comportamentos e pensamentos reprováveis até para os padrões da época; é também inegável que sempre que estamos com aquela família sentimos que o filme se fecha ainda mais sobre si, nunca explorando todo o seu potencial. Anne Hathaway é, por exemplo, bastante sub-aproveitada no papel da mãe de Paul e o mesmo se poode dizer de Jeremy Strong como o pai do menino, não fosse uma boa sequência final no carro quando conversa com Paul, empatizando com o mesmo e criando laços que talvez até então não existissem. É sempre com o avô, interpretado por Anthony Hopkins, que Paul se sente mais confortável e é também nessas cenas que o filme melhor respira, deixando Paul descobrir o artista dentro de si, mas também o compasso moral que lhe falta para deixar a infância e entrar numa nova fase da sua vida, tão aterradora quanto à anterior. É o suficiente? Possivelmente, não. Mais uma ou duas cenas entre avô e neto teriam, provavelmente, dado uma maior dimensão emocional à relação que nos envolvesse mais e nos fizesse chorar baba e ranho, o que não acontece.
Julgar os aspetos técnicos deste filme não é o fundamental – apesar de ser sempre bastante competente, apesentando, por exemplo, uma bela fotografia. Não era esse o foco do autor. Numa história tão pessoal, Gray quis focar-se nos acontecimentos, no seu significado à época e no signficado que viriam a ter ao longo da sua vida. O cineasta cumpre os mínimos, mas não nos dá tudo o que queríamos ver ou que o próprio quereria transmitir. O elenco é excelente, os mais jovens têm uma cativante dinâmica e o filme procura ter muito a dizer. É pena é que nunca consiga aprofundar os seus temas de forma refrescante.