Athena (ou No Church in the Wild como tragédia grega)

Romain Gavras nunca me enganou. Com a sequência de acção inicial que termina num zoom-out cénico digno de Peter Jackson a mostrar as forças de Minas Tirith, vi logo que a aposta visual era forte. Fora isso, o que mais me poderia dar? Como manteria tamanha expectativa? Simples: tornou seu algo que já vi antes, para contar a sua história.

Assim que lançou o mote do que queria, fiquei pregado ao sofá. Apesar de ser difícil manter a oferta épica em escala, dado o enquadramento e enredo, eis que tanto o enquadramento e enredo são por si, ingredientes fundamentais para dar forma ao deslumbre visual que, acima de tudo, respeitou o meu tempo e atenção.

Athena é um bairro em França pautado por minorias, diferentes crenças religiosas, baixa classe económica e quesitos adjacentes resultantes dessa conjectura. Como se esta realidade não fosse por si só propensa a marginalidade e sobrevivência em vez de qualidade de vida, dá-se uma morte que choca o país.

Três irmãos, com percursos diferentes neste contexto, são directamente afectados por esta fatalidade. Cada um deles procura dar resposta como melhor sabe, para servir os seus interesses, que passam por si apenas ou outros, dependendo da personalidade de cada um.

E ainda fica mais interessante. As acções de cada um deles interceptam-se a distintos actos do filme. Os seus valores são levados ao limite da integridade e rapidamente se difunde o certo do errado, o moral do vil, o justo do injustificado.

Até que ponto estou disposto a ir pelas minhas convicções, quando sinto visceralmente que estou certo, apesar de estar a ser posto em causa de me dirigir a um ponto sem retorno?

A partir de que momento, a chamada à responsabilidade é uma luta inglória que me torna vilão em vez de vítima que procura defender-se e os demais em seu redor?

Quando é que não aceitar vergar-me por entidades superiores a mim, que quotidianamente me vencem pelo cansaço do peso que exercem sobre mim, me coloca em rota de colisão com aqueles que estou a procurar defender?

Até quando os meus esforços activos de me tornar protagonista do jogo que me torna insignificante, para tentar unificar e apaziguar, me mantêm cego perante a evidência de que o inimigo nunca me irá ver como aliado?

A representação é elemento forte de Athena.

Salim Slimane é o “general” Karim que se justapõe ao irmão mais velho Abdel, interpretado por Dali Benssalah, um soldado multi-condecorado pelo exército francês.

Um está extremamente revoltado pelo sucedido. O outro tenta colocar tanta água na fervura quanto pode para evitar carnificina.

Um está disposto a matar pelo que acredita. O outro está disposto a morrer para que não aconteça com mais ninguém.

Um fritou completamente o fusível e não olha a meios para atingir os seus objectivos. O outro é para lá de estóico e não desiste do diálogo.

Há um terceiro irmão que sinceramente podia muito bem não aparecer, mas que não estraga nem subtrai nada quando aparece.

Há uma cola de sobriedade que ancora as intenções de cada protagonista com a força gravítica inamovível cuja sua mera menção e deixas visuais ecoam estridentemente: a mãe.

A cinegrafia… Senhor Gavras…

Instantaneamente reconheci a estética de No Church in the Wild de Kanye West e Jay-Z por todo o filme. Qual não foi a minha surpresa em deparar-me com o mesmo realizador nesse videoclipe…

As sequências montadas na sala de edição como single-shot, a riqueza visual e soberba dos planos amplos em câmara-lenta, a beleza do caos filmado com excelso trabalho de figuração, a decadência visual quase racional para a escalada de violência completamente desproporcional a um cenário real, mas com alto índice de realismo e exequibilidade na vida real, são tudo evocativos que aterrorizam de tão românticos, poderosos, emotivos, inefáveis e palpáveis que foram transmitidos da acção encenada para a lente, da lente para a tela, da tela para os nossos olhos, e destes, para o meu ser, quais espelhos da alma.

Athena toca em feridas da sociedade actual: a violência policial, a efervescência da extrema-direita em países outrora seguros da sua insignificância, a guerra de classes, a exclusão social, a marginalidade e a violência.

A subtileza está cá. A crueza também. O fio-condutor de sucessão de acontecimentos é sólido. De ponta a ponta é uma aposta ganha da Netflix. 1h40 de rodagem com propósito, que contou o que quis e não se esticou mais do que devia, por reconhecer os seus limites. Este respeito que teve por mim não passou despercebido.

Dispensava imenso o elemento mais constrangedor de todo o filme: o uso de petardos e fogo-de-artifício para combater a polícia. Entendo a mensagem no contraste pretendido dessa luz forte de revolta que irrompe uma noite de resignação, mas por favor… Pedras.


Athena
Athena

ANO: 2022

PAÍS: França

DURAÇÃO: 99 min.

REALIZAÇÃO: Romain Gavras

ELENCO: Dali Benssalah, Salim Slimane, Anthony Bajon

+INFO: IMDb

Athena

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