A premissa inicial de Beef é tão básica que nem eu próprio lhe dei o devido valor inicialmente. Como se parte de uma briga de trânsito para uma minissérie de dez episódios? O culpado aqui sou eu por não colocar as minhas esperanças nas mãos daqueles que são a força-motriz de qualquer tipo de representação narrativa: os escritores.
A forma como esta série parte de algo fechado para expandir os seus horizontes, as suas temáticas e problemáticas é algo que deveria ser estudado. Há um cuidado enorme com o material, há direções inesperadas, há personagens que são construídas de um modo tão complexo que tanto as amamos, como odiamos, terminando por, acima de tudo, compreendê-las. Afinal, empatia é algo que todos nós deveríamos ter para com os outros – todos nós passamos por momentos difíceis, todos nós somos imperfeitos – mas é algo que muito pregamos e pouco colocamos em prática. E a série é perfeita a mostrar-nos como isso é algo essencial e algo que devemos treinar, ao mesmo tempo que nos mostra que as suas personagens não o conseguem colocar em prática, expondo também com isso todas as consequências – mais ou menos exageradas – que podem a isso vir associadas.
Mas Beef vai além das camadas da empatia e compaixão, procurando também perceber causas que expliquem quem hoje somos e por que razão tomamos determinadas atitudes auto-destrutivas. Os acontecimentos aos quais somos expostos numa idade precoce produzem trauma que irá ser carregado por nós ao longo de toda a nossa vida, mesmo que nem sempre nos apercebemos disso nem das suas consequências. Quem somos está no nosso ADN, mas além dos fatores genéticos, há os fatores sociais, familiares e relacionais que definem muito daquele que é o produto final. E a parte mais assustadora e, simultaneamente, mais entusiasmante disto tudo? O produto nunca é verdadeiramente final. Estamos em constante mudança, em constante evolução – não confundir com progresso – e a pessoa que hoje somos é definida por muito do que fomos no passado, mas não podemos esquecer que as nossas escolhas de hoje – e podem ser escolhas de mudança – irão refletir-se no que iremos ser no futuro.
Os temas de Beef vão ainda mais além na sua complexidade. A co-dependência e a forma como não nos conseguimos separar do que nos é próximo – ao ponto de tornarmo-nos nós próprios tóxicos – está muito presente na relação entre irmãos que nos é apresentada. A inveja e o desejo em ter o que outros têm – sejam relações humanas, sejam posses materiais – é muito exposto através de personagens secundárias, mas também as nossas personagens principais sofrem do mesmo, procurando sempre algo ao qual não têm acesso, procurando o impossível, procurando a felicidade plena. E toda essa busca só torna o último episódio e as suas conclusões mais fascinantes, mesmo que a sua aparentemente calma reflexão apareça depois de um explosivo penúltimo episódio que é o melhor da série e do que melhor se pode ver em televisão.
Lee Sung Jin tem aqui a sua estreia em produções desta escala e não só é o criador e principal escritor como se estreia na realização ao ocupar essa cadeira no fascinante e surreal último episódio. É incrível tudo o que faz, seja a sua escrita entrelaçada, os elementos surpreendentes – e chocantes em alguns casos! – que nos coloca em cena ou as conexões que faz a temáticas como a arte ou religião. Tenho muita curiosidade para o que fará a seguir, embora tenha ficado um pouco decepcionado quando me apercebi que o próximo projeto a que está associado é um projeto da Marvel. De qualquer forma, só posso dizer que a Marvel sabe o que está a fazer ao assinar com ele.
Seria, ainda assim, injusto terminar a minha crítica sem falar do elenco que dá vida a tudo o que vemos em casa. Nos papéis secundários, Young Mazino (Paul, o irmão de Danny) e Joseph Lee (George, o marido de Amy) são os que mais espaço têm para brilhar (e fazem-no), mas também Ashley Park (a “amiga” de Amy, Naomi), Maria Bello (a chefe Jordan), David Cho (como Isaac, o primo e amigo de Danny), Patti Yasutake (a mãe de George) e Justin H. Min (o religioso…com tudo e com nada) estão sempre a um excelente nível. Mas são mesmo Steven Yeun e Ali Wong que brilham nos principais papéis. Eles vivem Danny e Amy, duas personagens aparentemente tão diferentes, mas com tanto em comum que sempre nos parecem humanas. Com defeitos, com falhas, com dúvidas, mas com muita personalidade com escolhas que – mesmo que não concordemos – conseguimos entender. Se Yeun já não é qualquer surpresa – vejam Burning, Minari ou Okja se precisam de alguma confirmação – é Wong que mais me surpreendeu pois não lhe conhecia esta dimensão dramática que tão bem dá a esta personagem.
Conforme ia escrevendo estas palavras, apercebi-me de que Beef é ainda melhor do que o valor que inicialmente lhe dei. Partindo de uma premissa aparentemente simples, envolve-nos e suga-nos com uma escrita inteligente recheada de camadas. Tem muito valor de entretenimento, mas o sumo maior está nos seus temas e na complexidade das suas personagens muito bem representadas nos papéis principais por Yeun e Wong.