Paul Verhoeven é um génio a quem a ausência de o creditar a tal estatuto só é indultada pela incompreensão da sua visão. Tinha de ser um incompreendido a contar a história de uma histórica incompreendida que fez o que quis, como quis quando nada disso era aparentemente possível.
Este filme tem três objectivos claros: levar-me a acreditar, fazer-me duvidar do que acreditei, esclarecer-me e fechar o assunto.
O senhor Verhoeven está muito bem para as curvas, igual e fiel a si mesmo, usando e abusando dos traços de exagero e subjacência que me tem vindo a habituar onde dependendo de quanto me queira envolver num filme seu, serei proporcionalmente satisfeito.
Caso em exemplo:
– Robocop (1987): um polícia numa Detroit distópica é ferido mortalmente, sendo aproveitado para retornar ao serviço como um cyborg poderoso para combater o crime que assola a cidade.
OU ENTÃO
– Robocop (1987): um homem ressuscitado artificialmente depara-se com o dilema de recuperar a sua antiga vida num novo corpo e mente aprisionada para um novo propósito ou abraçar a nova oportunidade em ser alguém, fazer mais e melhor e aí encontrar-se como nunca tentou.
OU ENTÃO
– Robocop (1987): depois de morto, o agente Alex Murphy retorna ao serviço como um cyborg poderoso reconstruído pela OCP. Com as suas novas capacidades entende que é o principal peão numa trama socio-governamental pois a empresa que o construiu foi quem contratou o gangue para fazer de si exemplo e cobaia. Cabe a si travar esta centelha de ditadura e controlo da qual o mesmo é integrante pelo uso da força, pelo uso da força.
Este ensaio é igualmente possível em Total Recall (1990), Basic Instinct (1992), Starship Troopers (1997) e até Hollow Man (2000).
Benedetta não foge a este sublime mil-folhas narrativo e de realização onde há o que ver, o que entender, o que fazer coçar a cabeça e o que concluir, pasmar, relativizar ao setting histórico e acima de tudo satisfazer.
Como nenhum realizador faz o filme sozinho, o próximo bouquet de flores tem de ser entregue ao elenco.
– Virginie Efira é louca. Tem um sério problema sociopático e precisa tratar-se. Para ontem. Por favor. Ou então que filme, que se chame de outra coisa mais que Benedetta Carlini e filme, também por pouco mais de 2 horas. Eu entro nessa viagem de muito bom grado;
– Charlotte Rampling como Abadessa Felicita é o compasso personificado. Sabe sempre quem é, como se resolve e é bastante humana como tal. Imperfeitamente humana. Justa e imperfeitamente humana. Esta justiça na imperfeição fá-la ser tão convincente, empatizante e compreendida;
– Daphne Patakia como Bartolomea emana química com todos com quem contracena. Toda a sua cara representa. Há uma compreensão profunda do que lhe é pedido, de como executa e de como não se esforça, de como lhe-é natural. Que bálsamo foi desde que apareceu até ao final do filme. Ajudou imenso a quebrar o potencial tom cravado de medieval que o filme estava a ter até então;
– Personagens mais secundários como Alfonso Cecchi (Olivier Rabourdin), o Núncio (Lambert Wilson), o padre Paolo (Hervé Pierre) e a irmã Christina (Louise Chevillotte) são tão bons a prestar suporte, a desbloquear a trama, a fazê-la avançar e a arrebatar as suas cenas. Bravo!
Paul Verhoeven faz uso da nudez, do sexo, do sangue e da violência como ferramentas que conferem choque e exacerbação do que quer dizer sem dizê-lo, portanto, mostrando-o. Em Benedetta não foi excepção. Faz com propósito, para pregar bem forte na cruz dos nossos olhos o que quer inferir, ainda assim com conta, peso e medida. Quebra-nos do calvário de uma determinada porção da história, fazendo-nos revalidar o compromisso que temos com ele nessa via-sacra em ver o que fez para nós.
Enorme palavra de apreço à compositora Anne Dudley, à directora de fotografia Jeanne Lapoirie e à escritora da obra de onde originou este filme, a senhora Judith C. Brown.
Esta crítica é a mais longa que escrevi porque este realizador já me deu muito sem lhe ter pedido. Quando vi o seu nome nos créditos iniciais, sabia que ia para qualquer coisa. Com ele, qualquer coisa é especial. Especialmente por não esperar Benedetta dele, confiro 4,5 estrelas ao que Benedetta me deu. Obrigado por esta absolvição.