O interminável sofrimento de Blonde

Ao contrário da crença popular, não há uma fórmula para filmes biográficos. Embora estes possam cair várias vezes em clichés, a sua estrutura e a abordagem aos mesmos varia. Há aqueles que nos querem falar de toda uma vida ou, pelo menos, de longos períodos da mesma; há aqueles que se focam num específico período temporal, procurando abordar um certo acontecimento marcante; há aqueles que optam por uma abordagem mais séria; há aqueles que optam pelo mais extravagante; há aqueles suficientemente fidedignos à história original; há aqueles que se baseiam apenas levemente em factos. O que é Blonde? Bem, certamente não é algo muitas vezes visto. Certamente, é um filme que procura fazer algo diferente. No entanto, diferente nem sempre significa bom.

Blonde fala-nos de Marilyn Monroe. Aquela que para muitos foi o maior símbolo sexual da história. Uma personagem. Na verdade, Norma Jeane era alguém muito diferente daquilo que o público conheceu. O público via Marilyn, uma criação de quem à sua volta gravitava – mas que para a qual a própria muito contribuiu, embora o filme seja bastante redutor nesse aspeto – para vender o estereótipo de loira bonita, com atraentes atributos físicos, pouco inteligente, imaginada e usada quase exclusivamente para fins sexuais. Blonde procura dar-nos um pouco das suas duas facetas, embora nunca deixe nenhuma delas verdadeiramente brilhar.

Esta história não acaba bem. Não é segredo para ninguém que Monroe, ou Jeane, faleceu demasiado cedo – 36 anos – e de forma trágica. Não é também segredo para ninguém que para esse desfecho muito terá contribuido a forma como esta era percepcionada – e usada – por outros, o que levou à precipitação e agravamento de problemas psicológicos e/ou mentais que durante largos anos se foram manifestando. O que não devemos também fazer é passar uma borracha sobre tudo aquilo que a própria também conquistou, controlou e os momentos de felicidade e realização a que a própria teve direito.

Blonde apenas se foca no sofrimento. Blonde apenas se foca em tudo o que de negativo aconteceu consigo, toda a tragédia que levou ao seu desfecho. Bastante convincentemente intrepretada por Ana de Armas – o melhor que o filme tem para nos mostrar, para além de uma bela fotografia -, nós apenas vemos a Marilyn fraca. A Marilyn usada. A Marilyn sem poder para mudar fosse o que fosse na sua vida e naquilo que a rodeava. No final, sabemos que o desfecho poderá ter como principal causa não ter mesmo conseguido sair da situação onde se encontrava, mas até lá sabemos que ela foi mais do que apenas isto. Jeane ajudou também a construir a sua imagem e a partir de uma determinada fase da carreira teve mesmo total controlo sobre a mesma, sobre a sua relação com parte da imprensa e como era projetada para o público. Ela foi contra os grandes estúdios de Hollywood e fundou o seu próprio estúdio, numa enorme demonstração de força em qualquer época, mais ainda nos anos 50. Andrew Dominik não está interessado em nada disso. Ele está interessado apenas e só no sofrimento e na queda para o abismo. Não na luta. Na dor.

O realizador poderá defender a sua abordagem justificando que essa é a história que ele quer contar, é esse poço sem fundo onde uma pessoa mergulha sem conseguir escapar. Tudo bem, é a sua visão criativa. Do ponto de vista crítico podemos contra-argumentar que a arte quando tem apenas uma nota – e quando repete essa nota durante quase três horas – torna-se desinteressante, pois é demasiado unidimensional para ser credível e justificar a sua longa duração, mesmo que o entertenimento não seja o fim último (e aqui não o é, com certeza). O autor – que aliás baseia-se num livro com abordagem semelhante – pode escolher não falar da Marilyn lutadora e forte. Aliás, até toca nesses pontos – uma conversa telefónica sobre questões contratuais, um discurso sobre querer ser “mais atriz” – mas sempre que o faz fá-lo numa ótica de fragilidade e sofrimento nunca demonstrando qualquer força e isso torna esta experiência, além de desagradável, repetitiva e pouco apelativa a que seja levada até ao final.

Andrew Dominik é alguém que se tem em muito boa conta – o que é ótimo -, mas neste filme parece cair, por várias vezes, na esparrela de um ego demasiado inchado. Blonde parece sempre colocar os aspetos técnicos acima da sua história e das suas personagens. Isso dá-nos alguns belos planos. Isso dá-nos péssimas personagens que nem parecem baseadas em pessoas reais (é impossível que haja alguém tão desinteressante e unidimensional como a maioria das personagens apresentadas). Isso dá-nos algumas cenas inesperadas e originais. Isso dá-nos cenas que parecem existir apenas pelo choque e indignação que irão causar, exagerando no arrastar das mesmas unicamente para causar desconforto em quem assiste, parecendo esquecer-se que está a contar a história – ainda que apenas muito levemente baseada em factos – de um ser humano que, de facto, existiu. A cena em que a personagem principal pratica sexo oral durante largos momentos é, talvez o melhor exemplo, mas há outras – como as sucessivas visões do feto – onde isso se vislumbra com facilidade.

Nem a excelente prestação de Ana de Armas consegue salvar Andrew Dominik da sua profunda egolatria enquanto artista. Blonde coloca a tecnicalidade acima da história e das personagens, tratando Marylin Monroe – reduzindo-a a sofrimento e fraqueza – tão mal quanto Hollywood e os seus homens o fizeram.


Blonde
Blonde

ANO: 2022

PAÍS: EUA

DURAÇÃO: 166 minutos

REALIZAÇÃO: Andrew Dominik

ELENCO: Ana de Armas; Adrien Brody; Bobby Cannavale; Xavier Samuel; Julianne Nicholson

+INFO: IMDb

Blonde

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