Boiling Point (ou a química perfeita em plano continuado do que pessoas são e fazem ser)

A grande síntese deste filme, caracterizo-a pelo último prato da refeição, a sobremesa:

– Uma fatia de cheesecake de 1h32 com coulis de fachada em esforço sobre uma massa de contrição azeda que combate a base crocante de realidade escondida difícil de mastigar.

Estes filmes que caracterizam a vida ou esferas isoladas dela que me têm calhado para opinar estão tão agradáveis e artisticamente enriquecidos que começo a suspeitar da qualidade que lhes atribuo por contraste a ser parcial à temática. Agradecia do fundo do coração que, caso seja a segunda hipótese, me avisem sobriamente e sem rodriguinhos para que me recalibre e volte a estar em contacto com alguma frieza abjecta e misantropa que gosto de entender que tenha para contradizer a razão de escrever para vós, ou seja, dar a minha opinião condimentada de parcialidade, pese o paradoxo.

Mas não será desta vez.

Boiling Point é um amouse-bouche directo, um ceviche cru, um ensopado de borrego emotivo, um caldo de galinha humano e um bife barato tenso.

Directo porque é filmado sem cortes. Entendo esta decisão de filmagem como um mergulho em apneia que nunca deixa vir à tona, onde momentos catárticos de sequências de desenrolar narrativo ou até mesmo actos inteiros re-oxigenam o espectador com bolhas de ar de introspecção e diálogos ou monólogos mudos. Só nós e os protagonistas.

Cru porque para além da escolha de edição, os planos são apertados, sem intromissão. Não é um exagero propositado como em Mother (2017, Darren Aronofski) mas com um senso inglês de noção de delicadeza a não forçar entrada na bolha pessoal dos personagens, a menos que entenda mesmo ser pessoal e hermético.

Emotivo porque os actores são notáveis a interpretar pessoas comuns com vidas próprias e dissonantes cujas se esforçam turno após turno a deixá-las fora do restaurante. De destacar uma cena muito curta no primeiro acto entre a chef pasteleira e o seu ajudante. Caiu-me o queixo e ainda assim não marcou necessariamente o tom para o resto do filme. De destacar o altamente competente Stephen Graham e a sua co-protagonista maior Vinette Robinson.

Humano porque o que observamos são pessoas comuns. Tão comuns que me esqueci que estava a assistir a actores a representar, porque a narrativa, filmografia, ritmo serviram para realçar esta gente toda. E que bem que estas pessoas se saíram a retratar humanos. Não detectei nenhum overacting, nenhuma sede de protagonismo ou vontade extra em aproveitar os curtos tempos de cena. Vi um esforço colaborativo e despretensioso tal como visou aquela equipa naquele restaurante naquela noite: trabalhar em prol do objectivo comum que foi ultrapassar mais um turno.

E por fim, tenso. O produto final, esta soma de factores promoveu tensão. A ausência de música facilita imenso isto. A luz baixa geral da sala de refeições como subtexto de turvez ou pouco esclarecimento da verdade de cada personagem funcionou muito bem com a tépida cozinha iluminada que permite desarmar os escudos entre colegas, bem como a reluzente cozinha das traseiras onde não há disfarce, coloquialismo ou decoro. Vale somente a verdade mais nuclear de cada um, entre eles, sobre eles.

Boiling Point é um hino ao que Anthony Bourdain há muito escrevera sobre a cozinha de um restaurante, que Gordon Ramsay sensacionalizou para vender e que desmascara a elegância romantizada clássica ao despido e genuíno heavy-metal.

Este filme sente-se mais do que eu ache que possa descrever. Não quero ser indigesto. Façam o favor de apreciar o cheesecake.


Boiling Point
Boiling Point

ANO: 2022

PAÍS: Reino Unido

DURAÇÃO: 92 min.

REALIZAÇÃO: Philip Barantini

ELENCO:

+INFO: IMDb

Boiling Point

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