Guillermo del Toro’s Cabinet of Curiosities é uma montanha russa de horror cósmico

O horror cósmico é um dos mais fascinantes gêneros da ficção. Também conhecido como horror lovecraftiano, esse subgênero do terror tem grande impacto pois aborda uma das relações mais intrigantes e paradoxais que a humanidade leva com o universo: o pavor e o fascínio pelo desconhecido.

O gênero criado pelo aclamado e extremamente problemático autor H.P. Lovecraft, explora os pavores de lidar com o incompreensível e a loucura de perceber que tudo o que conhecemos é nada, se comparado com os segredos que o universo guarda de nós. O que pode ser mais apavorante que perceber que tudo o que conhecemos, até nossa própria existência, são completamente insignificantes perante um infinito aglomerado de verdades que nem sequer somos capazes de compreender? Pois é. Como eu disse, o cosmicismo é simplesmente fascinante!

Guillermo del Toro’s Cabinet of Curiosities (O Gabinete de Curiosidades de Guillermo del Toro) é uma carta de amor a esse subgênero, e uma grande homenagem à obra de Lovecraft. Guillermo del Toro, o aclamado e mais fofo diretor da atualidade (não é uma piada com a forma física dele, o homem é realmente muito fofo), é o criador e curador desta antologia que reúne oito histórias bizarras, criativas e cheias de agonia.

Apesar de a maioria dos filmes serem ótimos, há aqui algumas obras bem decepcionantes. A seleção de histórias que del Toro apresenta não é exatamente consistente no quesito qualidade. Cabinet of Curiosities parece uma montanha russa, com altos e baixos. Entretanto, é impossível negar que o tom de estranheza e/ou desconforto estão lá, presentes em cada episódio, formando uma curiosa unidade tonal para essa compilação de histórias tão diferentes.

Cada capítulo dessa antologia conta com um realizador diferente, e isso ajuda na manutenção da expectativa gerada entre uma história e outra. Uma antologia ganha muito ao trazer para sua curadoria vozes e olhares diversos. Cada profissional carrega diferentes experiências de vida e bagagens culturais que inevitavelmente respingam em seus trabalhos, e apostar nessa diversidade apenas agrega valor ao produto final.

De um modo geral, todos os realizadores entregam bons trabalhos, pelo menos nos quesitos técnicos e estéticos. Mas visuais belos e impressionáveis por si só não sustentam uma boa obra e, infelizmente, Cabinet of Curiosities por vezes parece ter esse aspecto como o central de seu conteúdo, quando a prioridade deveria ser contar histórias intrigantes, bem desenvolvidas e, claro, curiosas.

Há muito o que dizer sobre cada capítulo da antologia, então, sinto que devo me atentar a desenvolver comentários individuais para cada obra, mesmo que brevemente.

Lot 36

Cabinet of Curiosities começa muito bem com este que é o meu filme favorito da coleção. Lot 36 (Lote 36) é realizado por Guillermo Navarro, e é adaptado de um conto do próprio Guillermo del Toro, ambos imigrantes latinos. É importante perceber isso, pois Lot 36 apresenta em seu texto, com um pano de fundo macabro e diabólico, discussões sobre intolerância racial, xenofobia e vertentes fascistas que, apesar de bem literais, carregam o fardo das dificuldades que os xarás Guillermos certamente passaram, e talvez ainda passam, por serem estrangeiros em terras norte-americanas. 

Lot 36 é seco, brutal e bem sujo. A realização do filme é excelente, e transmite muito bem a atmosfera empoeirada, úmida e enferrujada que os cenários apresentam. Os tons de marrom e cinza dominam a paleta de cores do filme, o que reforça com êxito os aspectos recém citados.

Para fechar, Tim Blake Nelson está repugnantemente excelente nesta que é uma das atuações de maior destaque de toda antologia. Nelson exala a podridão que transborda das entranhas conservadoras e negacionistas de sua personagem, e brilha em meio à opacidade dos tons de poeira e ferrugem.

Graveyard Rats

Este é bem divertido! Graveyard Rats (Ratos de Cemitério) é uma ótima mistura entre terror e comédia. Com um tom muito aventuresco, o filme conta uma história absurda e revoltante de uma sequência de ações estúpidas, que levam o protagonista a enfrentar as consequências de suas empreitadas criminosas, e também sua ganância.

O uso de efeitos práticos garante peso às ameaças de Graveyard Rats, além de dar muito charme à obra. As claras referências à mais popular criação de H.P. Lovecraft, a mítica entidade Cthulhu, adicionam um ar  de bizarrice e mistério muito bem-vindos ao capítulo, que, ao final, deixa um gosto agradável de filme de aventura à moda antiga. Muito bom!

The Autopsy

The Autopsy (A Autópsia) me conquistou, principalmente, por focar maior parte da sua ação nos diálogos. O texto desse capítulo é inteligente e criativo, mas, infelizmente, deixa a desejar quando, nos minutos finais, decide expor as decisões visivelmente óbvias de suas personagens em diálogos expositivos que temem a não compreensão de parte do público da resolução de sua trama. Porém, mesmo com a deslizada no final, The Autopsy agrada bastante.

The Outside

De longe o mais agoniante dos capítulos. The Outside (Por Fora) aflige desde sua estética, que com seus exageros em texturas e excessos de cores vivas e quentes, parece denunciar desde o início que há algo de muito errado naquele universo, até às transformações grotescas que a protagonista passa durante o filme.

The Outside toca em ansiedades tão presentes na vida das mulheres, que dúvido algum dia poder experienciar a obra de uma forma tão potente quanto alguém do sexo feminino. Ana Lily Amirpour (realizadora) aborda inseguranças e a sexualidade do universo feminino de um modo que seria impossível nas mãos de um realizador homem.

The Outside, assim como Graveyard Rats, aposta bastante na comédia. Entretanto, aqui se faz mais complicado rir, tamanho o desconforto causado pela obra. Mas isso não é negativo, de forma alguma. A angústia e confusão causadas pelo filme ajudam na construção do universo bizarro de The Outside. O único problema que tenho com o episódio, é a sua duração. The Outside parece se prolongar mais do que o necessário para contar sua história de forma satisfatória. O filme começa e termina muito bem, mas seu desenvolvimento é um pouco cansativo, enrolado e repetitivo. No fim, o resultado é agradável, mas a experiência poderia ter sido bem mais dinâmica.

Pickman’s Model

Pickman’s Model (Modelo de Pickman) é o primeiro de dois episódios baseados em obras de Lovecraft, e isso causa uma grande expectativa em torno do filme. E… essa expectativa acaba em decepção.

O texto do quinto capítulo da série é bom e muito intrigante, mas a realização deixa muito a desejar. Keith Thomas (realizador) não acerta nem no drama, nem no terror que a história pede. Nenhum ator convence o suficiente com seus trabalhos para nos fazer engajar na trama, e as relações entre as personagens é tão rasa que pouco nos importamos com seus laços. Quanto ao terror, Pickman’s Model chega a ser triste. O visual de uma ou outra criatura criada por cgi chega a impressionar, e funciona bem. Porém, quando usados efeitos de maquiagem para dar vida às aberrações, o resultado é bem feio. Mas o pior não fica no visual. Keith Thomas não tem o menor senso de timing ou criação de atmosfera de terror, e passa o filme todo sem apresentar uma única cena minimamente tensa ou assustadora.

Uma grande decepção! Sigamos para o próximo.

Dreams in the Witch House

O segundo episódio adaptado de um texto de Lovecraft se apresenta, e agora de forma mais digna!

Dreams in the Witch House (Sonhos na Casa da Bruxa) é muito imaginativo e aventuresco. Mesmo com uma boa pitada de humor, o filme é efetivo quando o assunto é terror. É verdade que seria muito bem-vindo uma melhor exploração das silhuetas e olhares vindos da escuridão para manter um maior clima de mistério e tensão, mas, pelo menos, a precoce revelação da ameaça apresenta um visual muito bem pensado e realizado, que me divertiu muito por lembrar os visuais das criaturas do jogo eletrônico The Witcher 3 (eu adoro esse jogo!).

Rupert Grint, o eterno Ron Weasley da série de filmes Harry Potter, protagoniza o sexto capítulo da série, e é divertido perceber as referências à clássica franquia espalhadas pelo filme. Isso não diz nada em relação à qualidade do episódio em si, mas julgo a curiosidade digna de menção.

The Viewing

De longe, o ponto mais baixo de Cabinet of CuriositiesThe Viewing (A Inspeção) é monótono e vazio. Tudo o que Panos Cosmatos (realizador) tem a oferecer com seu filme são visuais lindos de uma estética retrô-futurista e estilosas arquiteturas brutalistas. Há muita conversa fiada em The Viewing. Muita conversa que significa pouco, e vai para lugar nenhum que tenha grande importância para a conclusão da trama. Nem mesmo a banda sonora se salva. No momento em que entra em cena, a música de The Viewing segue no mesmo tom aborrecido até seus finalmentes. 

Extremamente chato!

The Murmuring

E então, assim como começou, Cabinet of Curiosities fecha sua curadoria muito bem!

The Murmuring (O Murmúrio) é o filme mais visualmente deslumbrante de toda a série. Contemplativo e dramático, o último episódio da antologia impacta com o drama, e isso se deve, além do argumento e dos atores, à fotografia do filme. Os quadros de The Murmuring põe as duas protagonistas em momentos de pura melancolia, seja através da naturalidade da contemplação da natureza, seja através da simetria dos sufocantes planos no interior da casa em que a história se passa.

Quanto ao terror, isso deixa um pouco a desejar. Diferente dos demais aspectos do filme, o terror aqui é abordado de maneira piegas e clichê. Mas isso não chega a incomodar ou influenciar muito negativamente a obra, uma vez que tudo mais o que se propõe a fazer, faz de forma excelente. 

Essie Davis e Andrew Lincoln, que vivem o casal de protagonistas, são o maior destaque no quesito de atuação de toda a série. Que trabalho comovente esses dois entregam aqui! A angústia e o pesar do trauma vivido pelas personagens é transmitida com muita veracidade através de cada choro engolido, cada sentimento reprimido, e cada explosão de exaustão, tristeza e dor que a dupla de atores realiza. Quem tem filhos sabe o quanto nos dedicamos aos nossos pequenos, e dificilmente não irá se comover com a história que The Murmuring tem a contar. Excelente forma de terminar essa carismática antologia!

Terror, drama, aventura e até comédia! Guillermos del Toro’s Cabinet of Curiosities é uma compilação de histórias diferentes, contadas por pessoas diversas, que merecem ser assistidas por todo mundo. O carisma de del Toro é enorme, e todo seu charme transborda nesse seu empolgante projeto. Apesar de alguns pontos baixos, Cabinet of Curiosities mantém um nível agradável de qualidade que sustenta a curiosidade até o último episódio.

Grande adesão ao catálogo da Netflix, belo projeto de Guillermo del Toro! Assistam à série, eu imploro. Pois Cabinet of Curiosities é o tipo de produção que anseia por mostrar sempre mais, e por isso merece uma renovação.


Guillermo del Toro's Cabinet of Curiosities
O Gabinete de Curiosidades de Guillermo del Toro

ANO: 2022

PAÍS: EUA

DURAÇÃO: 8 episódios

REALIZAÇÃO: Ana Lily Amirpour, Panos Cosmatos, Catherine Hardwicke, Jennifer Kent, Vincenzo Natali, Guillermo Navarro, David Prior, Keith Thomas

ELENCO: Kate Micucci, Essie Davis, Ben Barnes, Andrew Lincoln, Rupert Grint, Tim Blake Nelson

+INFO: IMDb

Guillermo del Toro's Cabinet of Curiosities

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