Cairo Conspiracy – Religião, política, hipocrisia e machismo

Se há certos filmes que consumimos e extraímos tudo o que eles nos querem dizer no momento em que o mesmo termina, há outros que muito têm para explorar e entendermos nas suas entrelinhas. Cairo Conspiracy – anteriormente chamado de Boy From Heaven, um título bem mais adequado – é um thriller político e religioso que tem algumas mensagens bastante claras, mas que também nos permite ler e extrapolar para muito mais.

A história é simples e aparentemente contida. Fala-nos de um rapaz, Adam (Tawfeek Barhom), que recebe uma carta que irá mudar a sua vida: foi aceite na prestigiada Universidade Al-Azhar no Cairo, Egipto. Mal lá chega, o Grand Imam of al-Azhar morre subitamente e uma disputa pela sua sucessão começa. Para alguém com pouco conhecimento da cultura em causa e do que, de facto, representa esta posição – acreditem, isto é muito mais do que um mero reitor de faculdade – pode parecer estranho porque é que este é um lugar tão cobiçado. Porque é que há quem mate. Porque é que há quem dê a vida. Confesso que quando o filme terminou pesquisei um pouco mais sobre a temática, mas o filme faz um bom trabalho de nos mostrar a importância do que aqui estamos a falar, envolvendo vários tecidos religiosos – mais ou menos perigosos – e o próprio governo do Egipto. E onde é que aqui entra Adam? Pois, Adam, que era até então pouco mais do que “o filho do pescadores”, vê-se involuntariamente envolvido no centro destas intrigas, conspirações e jogos perigosos.

Tawfeek Barhom – o qual eu não conhecia – tem uma poderosa interpretação no papel do jovem rapaz. Um jovem que precisa ainda de se conhecer a si próprio mas que pouco tempo tem para olhar para o seu eu. Nem sempre faz a coisa certa. Nem sempre sabe o que deve fazer. Nem sempre tem facilidade em exprimir o que sente. É um adolescente confuso, como todos os adolescentes o são, mas não se pode dar ao luxo de permanecer nesse estado por muito tempo. Rapidamente é obrigado a fazer-se homem.

Homem. Se há coisa que a este filme não falta são homens. É praticamente impossível ver uma mulher que seja neste mundo tóxico e absolutamente patriarcal. Quando alguma atenção é dada a uma mulher é para expor a forma como é tratada pela sociedade e pelos mais poderosos. É para nos mostrar que deve permanecer sem opinião, sem identidade, submissa, obediente e agradecida pelo que a vida – os homens – lhe possibilitam. Posso estar a gastar muitas palavras com aquele que não é o tema central desta obra, mas sinto que a opção de Tarik Saleh é propositada. Na verdade, até quando nos mostra determinados ambientes familiares de personagens que nos deveriam ser mais queridas, o cineasta vai-nos dando pistas do que quer dizer da sociedade, do conceito de família e de como os géneros têm papéis bem definidos. 

É por aí que também se pode extrair muito do que este filme nos quer dizer sobre os seus temas centrais. Falamos de uma sociedade que se confunde com a sua religiosidade. Os papéis de todos se convergem com os papéis da Igreja, independentemente de estarmos a falar de um lado mais radical ou de um lado mais aberto. E quando divergem nos costumes e ensinamentos passados pela palavra escrita e falada, invariavelmente servem para expor toda a hipocrisia de um sistema que apenas resiste forte porque possibilita que uns poucos dominem e controlem tudo e todos. Quando Saleh nos mostra rituais higiénicos diários próprios da religião, ele mostra-nos pessoas a limparem-se de todos os seus pecados, de todas as suas inquietações e de toda a sua sujidade. A sujidade que deixa marcas por fora e a que deixa marcas por dentro. E, por muita boa vontade que exista, há sempre forças mais fortes que poderão levar estas pessoas para caminhos indesejados, caminhos que não representam o que aquela – ou qualquer outra – religião defende no papel.

Quando nos fala de relações de poder, Cairo Conspiracy envolve-nos com o seu forte guião e é fascinante. É-lo quando nos demonstra as relações calculistas de quem já tem calo na vida, mesmo que por vezes cale o que quer dizer. É ainda mais fascinante quando, aos poucos, nos vai revelando quem são, de facto, os jogadores principais deste jogo e quem são os seus peões. Há peões para todos os gostos. Isso é particularmente visível na figura do investigador que seguimos mais de perto – Ibrahim, muito bem interpretado, cheio de nuances pelo já conhecido Fares Fare – que tem os seus peões e também peão é de alguém. 

Visíveis são também outros que apenas são peões de alguém e que nem ali deveriam pertencer. Falo dos estudantes daquela Universidade que, de um lado ou do outro do tabuleiro, têm sido usados em guerras de poder e de bastidores. Esta é também uma forma de manter a sociedade da forma como está, doutrinando – grooming é a palavra certa – desde cedo, chegando a quem é mais influenciável e alimentando o crescimento do próprio sistema. 

Cairo Conspiracy pode parecer, em certos momentos, um filme frio. É um filme onde não há lados completamente certos ou personagens a fazer o que nos habituamos a ver nos heróis de Hollywood. Mas não se deixem enganar. Quando critica o modo de funcionamento de uma sociedade, não nos está a afastar das suas pessoas. Reconhece o cinismo, mas também acredita nos indíviduos e no impacto que pequenas escolhas podem ter. Não está a pedir guerra. Está a gritar por ajuda. Está a gritar por mudança. A mudança dos homens.


* Este artigo é baseado no original, em inglês, escrito para Buffedfilmbuffs.com

Walad Min Al Janna (Cairo Conspiracy / Boy From Heaven)

ANO: 2022

PAÍS: Suécia

DURAÇÃO: 126 minutos

REALIZAÇÃO: Tarik Saleh

ELENCO: Tawfeek Barhom; Fares Fares; Mohammad Bakri; Makram Khoury; Mehdi Dehbi

+INFO: IMDb

Walad Min Al Janna (Cairo Conspiracy / Boy From Heaven)

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