Candyman, de 1992, é já um clássico do cinema de terror. Misturando elementos de terror com os de um thriller, com grande foco no comentário social, racismo e gentrificação, foi um filme inovador no género e um dos mais marcantes da década de 90.
Tony Todd tornou-se imortal no papel do “homem dos doces” e Virginia Madsen teve uma prestação irrepreensível no papel principal. O original teve direito a duas sequelas, mas este filme procura esquecê-las, servindo como uma espécie de sequela do primeiro, funcionando, também, bastante bem como um reboot da franquia, podendo chegar a novos fãs que nunca viram o original. E quem foi chamado para comandar este reboot? Bem, a história andava há muito na cabeça de Jordan Peele, que é um dos escritores e produtores, mas s realização fica a cargo de Nia daCosta na sua estreia no género.
Nesta nova história, contada nos dias atuais, Anthony (Yahya Abdul-Mateen II) e Brianna (Teyonah Parris) mudam-se para um novo luxuoso apartamento em Cabrini-Green, uma zona hoje gentrificada, esquecendo o passado dos “projetos”. No meio do seu processo de criação artística, Anthony depara-se com a lenda do Candyman e, sem sua intenção, abre as portas a algo que vai aterrorizar todos os que se atrevam a dizer o seu nome.
O filme tem uma enorme componente de crítica social. E quando digo enorme não é um eufemismo. Praticamente em cada cena somos lembrados de como as comunidades – em especial as negras – destes “projetos” são tratadas, de como são colocadas de parte pelo poder das guerras imobiliárias quando a zona se torna atrativa, de como são vistas pelos pares, por forças de segurança e todos os que as rodeiam.
Alguns dirão que falta subtileza na forma como Candyman passa a mensagem e eu consigo entender quem o diga. Pessoalmente, acho completamente necessário num filme da personagem em questão nos dias de hoje. Seria um tiro ao lado não aproveitar a conjuntura atual para tornar Candyman num dos chamados “thrillers sociais”. Vejo muito dedo de Jordan Peele por lá, a fazer lembrar obras anteriores do cineasta. Mas não se deixem enganar: este filme é de Nia daCosta!
Nia coloca o seu cunho pessoal em cada cena que vemos, dando-nos um dos filmes esteticamente mais atrativos da história do cinema de terror, com um nível de detalhe pouco habitual no género. O teatro de fantoches que várias vezes nos conta acontecimentos passados é sensacional; os close-ups, principalmente de Anthony, quase que nos fazem entrar dentro da personagem; o enquadramento estético e a utilização de muito inspirados dutch angles está presente em todo o filme e as mensagens subliminares que procura passar com tudo o que está em segundo plano, fazem-me ansiar por uma segunda visualização. A realizadora percebe, também, muito bem o sentido de movimento, não tendo problemas em planos estáticos quando as personagens estão mais reflexivas, mas também dando-nos várias cenas com a câmara apressada a viajar com as personagens quando é urgência que se pede. Esteticamente, o filme apresenta uma acinzentada e muito bem conseguida fotografia, com uma composição de imagem muito cuidada, notando-se o amor pela obra original, que aliás é várias vezes referenciada, direta ou indiretamente neste filme (aguardem por alguns excelentes cameos!).
Narrativamente, Candyman não é perfeito. Talvez abra demasiadas portas que não têm todas ar para poder respirar. Talvez, a certo momento, seja confuso o rumo que está a seguir, ficando a faltar um maior desenvolvimento de certas personagens. Isto acaba por afetar um pouco o ritmo na segunda metade do filme. Ainda assim, a tensão criada – suportada numa enorme e sombria banda sonora – é mais do que suficiente para nos empolgar com tudo o que vai acontencendo no ecrã. Como fã do terror, talvez tivesse gostado, também, de mais sustos. No entanto, não foi essa a via escolhida, ficando os momentos de terror mais ligados a muito sangue no ecrã e, principalmente, ao terror de se ser sempre visto de forma diferente pela sociedade, nunca fazendo e sendo suficiente. Nas atuações, Abdul-Mateen II tem uma enorme interpretação no papel do artista incompreendido que também não compreende bem o que despertou e Teyonah Parris interpreta bastante bem o papel de esposa que não é só esposa, passando várias importantes mensagens ao longo do filme, deixando-nos com alguma pena por não vermos aquele seu passado melhor explorado. Outro destaque é Colman Domingo que tem um papel secundário de elevado valor e com grande impacto para a história.
Candyman é um filme muito eficaz na forma como referencia o original, contando-nos, em simultâneo, uma forte história original. Nota-se o dedo de Jordan Peele na escrita, mas é Nia daCosta que brilha na realização, colocando um detalhe impressionante em cada cena. Conta com uma grande componente de comentário social, mantém o nível de original e abre as portas a um público mais jovem. Ainda que gostasse que tivesse mais sustos, é uma obra recomendada para todos os que gostam de um bom slow-burn com muito para dizer.