Carvão (ou como contar uma história sobre um segredo com segredos)

Paradoxalmente à origem mineral ou vegetal do produto que batiza o filme, Carvão é altamente pesado. Pesado na reflexão, pesado no retrato, pesado na trama e pesado no humor que alcofa todo o peso que parte a estrutura da cama improvisada.

Começo pelo filme filmado. É lindo. Há planos de tremendo bom gosto. Aguçado até. Exímio e remissivo do que se faz para focar a atenção na inércia tensa do nada. O plano amplo fixo.

Para ajudar a este enquadramento, a ausência de música e a mistura indelével do som ambiente e elementos: vento, galinhas, fogo, porcos, água, “veados”, terra, jumentos.

A exacerbação do secretismo provinciano através do silêncio das pessoas que dá lugar às suas acções, omissões e meio envolvente tem de ser destacada.

Isto foi escrito e realizado pela mesma pessoa: Carolina Markowicz, no que aparenta ser a sua estreia como realizadora de uma longa-metragem. Bravo. Os meus mais sinceros e sentidos parabéns.

Maior atmosfera e tom de slice-of-life nesta trama dramática, talvez apenas com o filme a preto-e-branco, mas para isso já há algo para ver e tem nome simples também: Roma.

Sim, não estou a comparar o incomparável. E nem estou a dizer que Carvão é Roma. De todo. Estou a colocar Carvão no mesmo nível de proposta de Roma.

Carvão é um poço profundíssimo que devia estar vedado, abandonado num qualquer terreno devoluto, mas que não se resiste a atirar para lá um pedregulho e entender o que jaz no fundo. A realidade humorística de “Brutti, sporchi e cattivi” é o destino e a viagem exploratória é “Roma”, ou vice-versa.

A interpretação crua de todas as personagens quase que me convence que aquela gente é real. Não é fácil dirigir actores que provavelmente nem sabem o que é galinha-caipira. Também assumo que é absoluta presunção, mas o próprio filme mostra quando a representação é crua, crua, directa, fria e mordaz, tanto quanto é um elenco de actores com mais ou menos palmarés e créditos firmados a fazer de gente humilde do interior desse vasto e mastodôntico Brasil rural.

A história é deliciosa. Consegue demonstrar tudo ao que se propõe a apontar e jamais julga. O julgamento, esse, é remetido ao espectador. O filme simplesmente mostra e diz: é isto. Pensa sobre isto, mas pensa para ti. E caso não queiras pensar, leva aqui um enredo com laivos fortes de thriller para teres o que ver para não te deparares com a interpretação da vida real, de quaisquer pessoas que já conheceste, conheces ou nem imaginas que conhecerias.

A forma de como toda a gente se esquiva de abordar o que, pelo decurso do filme, toda a gente assume saber, é o que mais me surpreendeu. Não por ser inacreditável ou trágico, mas por ser humano e real. E este fragmento que se desenvolve paralelamente ao tópico fundamental do filme, torna-o delicioso porque a realizadora fez questão de resolver tudo o que abriu no início.

Há uma ligeira dificuldade em desatravancar a narrativa. Há uma ligeira penumbra nas sequências de desenvolvimento das personagens, nomeadamente da protagonista Irene interpretada por Maeve Jinkings. Não sei se foi intenção de pautar ritmo de marcha ou se houve uma inclinação natural quase irresistível a um bocejo ou outro de pretensiosismo.

Não tenho muito mais porque me queixar. Tal como estas gentes vivem e sobrevivem, também eu vivo bem com Carvão, tal como me foi dado.


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Carvão

ANO: 2022

PAÍS: Brasil

DURAÇÃO: 107 min.

REALIZAÇÃO: Carolina Markowicz

ELENCO: Maeve Jinkings, Jean da Costa Almeida, César Bordón, Aline Marta Maia

+INFO: IMDb

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