Chevalier é bem-intencionado, mas a figura histórica merecia mais

Wolfgang Amadeus Mozart em palco a dar o seu habitual espetáculo para uma grande e entusiasmada plateia. Um homem mestiço aproxima-se e pede para o acompanhar no seu Concerto No. 5. A plateia ri-se, Mozart ri-se. O homem começa a tocar e todos começam a entender que não está ali para brincadeiras. Mozart percebe que aquilo talvez seja para levar a sério e o que seria uma dupla a tocar em conjunto passa a ser uma competição de violinos. A batalha intensifica-se. O homem parece sempre ter uma resposta superior ao ataque que lhe foi desferido anteriormente. Mozart irrita-se e abandona o palco. O homem que pediu para o acompanhar é agora aplaudido de pé, com o público rendido aos seus dotes musicais. Esse homem é Joseph Bologne, o Chevalier

Esta incrível cena de abertura está entre as melhores do ano. Está, na verdade, entre as melhores algumas vez feitas em filmes do género. Uma batalha de violinos torna-se mais violenta, mais crua e mais entusiasmante do que um combate de MMA e é impossível não sairmos dela entusiasmados com tudo aquilo. Quando um filme começa tão nos píncaros, fica sempre a dúvida de como irá conseguir aguentar-se. Recorde-se que essa foi a dúvida e o medo do CEO da Walt Disney na altura, Michael Eisner, quando viu a fenomenal cena de abertura de The Lion King (1994). “Como é que vocês vão estar à altura disto?”. Se para The Lion King isso não foi um problema, o mesmo não posso dizer de Chevalier – também disponível na Disney+ – que sempre viveu à sombra dessa cena. 

Percebe-se que depois de uma cena tão tensa que nos coloca imediatamente na ação, o filme tenha que “acalmar os cavalos”, contextualizar tudo e criar bases narrativas. O problema de Chevalier é que parece que estamos sempre a criar bases narrativas para uma grande história até que percebemos que a grande história é apenas aquilo. Na mesma, Joseph Bologne é um homem que nasceu numa plantação em Guadalupe, filho de pai francês dono da plantação e de uma escrava descendente de africanos. O pai decide levar o seu filho ilegítimo para França depois de ver nele um enorme potencial no violino. É óbvio que discriminação foi algo que nunca lhe faltou durante o crescimento, mas Joseph sempre conseguiu calar todas as bocas com o seu enorme talento, fosse nos estudos, na música ou na esgrima, o que lhe viria a valer mais tarde a sua coroação como Chevalier por Maria Antonieta. Mais volta, menos volta e o que Chevalier quer é a direção da Ópera de Paris. Mas França vive momentos contrubados com uma revolução à espreita e é em tempos como esses que se revela a força de certas amizades e vêm ao de cima muitos preconceitos. 

Se acham que isto é uma grande embrulhada, acreditem: estou a salvar-vos de uma grande parte da mesma! Sub-enredos vão-se agregando, desde relações proibidas a uma mãe desprezada por um filho que quer obter a glória negando quem é. No fundo, tudo se resume a Chevalier ser um homem de muitos talentos que nasceu no tempo errado, numa sociedade que não estava preparada para aceitar a sua grandeza. A mistura de todas as temáticas e mais algumas – escravatura, família, identidade, revolução, política, música, talento – faz com que a obra nunca se foque realmente em nenhuma delas, passando tempo a mais em detalhes que não deveriam passar disso mesmo. Sim, falo da paixoneta por uma mulher casada – claro, com um branco rico – que ocupa tempo a mais desta história. Quando olho para o relógio e percebo que estamos a entrar no terceiro ato, surpreendo-me, pois nem percebo muito bem o que é que o filme quis estabelecer até aí e muito menos como pretende concluir. É sobre o homem? É sobre o artista? É sobre as politiquices e intriguices da época? É sobre a França imperial? É sobre racismo? É sobre identidade? Fica difícil e confesso não entender porque é que uma obra biográfica sobre uma figura tão desconhecida do grande público e tão importante se fique pelos 108 minutos com créditos incluidos, o que não deverá ter ajudado na exploração das suas várias facetas.

Mesquinhez minha confesso ser ver personagens históricas francesas a falar inglês. É uma opção criativa e não posso julgar a obra por isso, mas posso fazê-lo quando quem a escreve se lembra de escarrapachar isso na minha cara. Isso acontece quando Chevalier entra em sua casa e vê a sua mãe e algumas amigas a falar numa língua crioula. O mesmo irrita-se profundamente e diz “aqui fala-se francês”. Isto tudo em bom inglês. A sério?

Tecnicamente, Chevalier – o filme – é esplendoroso. Há um bom design de produção que replica muito bem edifícios e casas históricas, existe cuidado na fotografia e maravilhosos penteados e guarda-roupa que merecem fazer parte das cerimónias de prémios no final do ano. A juntar a tudo isso, a mixagem de som está sempre a um nível incrível, o que é um detalhe importante tendo em conta o tipo de obra de que estamos a falar. É pena é que um filme não viva só de aspetos técnicos e que, quando tudo o resto não cumpre as expectativas, isso não passe apenas de um adorno. Sim, é verdade que Kelvin Harrison Jr. tem uma boa interpretação no papel principal. Mas isso só também não chega.

Esta é uma figura histórica muito relevante da qual eu não tinha conhecimento e isso, por si só, demonstra que o filme era necessário. Apesar da incrível cena inicial e do bom desempenho do ator principal, a obra é diminuida por um guião pouco focado que apenas roça a superficialidade desta história e seus temas. Por um lado, é pena porque talvez nunca mais vejamos um filme sobre esta personagem com aspetos técnicos tão aprimorados. Por outro lado, pode ser que da próxima vez não tenha que ouvir tantos “franceses” do século XVIII a falar inglês com sotaque britânico e americano.


Chevalier
Chevalier

ANO: 2022

PAÍS: EUA

DURAÇÃO: 108 minutos

REALIZAÇÃO: Stephen Williams

ELENCO: Kelvin Harrison Jr.; Samara Weaving; Lucy Boynton; Marton Csokas

+INFO: IMDb

Chevalier

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