Drive My Car (ou mais uma iteração da visão japonesa sobre a vida e existência)

O entendimento asiático depurado sobre a vida e as suas nuances sempre foi motivo pessoal de admiração, inquietação e profunda exposição do quão imatura é a minha génese racional e emocional para tecer empatia que me permita encaixar o que este filme gastou 3 horas a apresentar como um “Calma. Deixa-me explicar.”

O guião adaptado de uma das sete histórias, retirada do volume “Homens sem Mulheres” do lendário escritor Haruki Muramaki (Kafka à beira-mar) faz ao espectador deste filme o que um drama japonês cumpre quase que por básica exigência de excelência: reflectir.

3h de rodagem é dose. Drive My Car é dose. Os temas tratados são dose. Não é um filme fácil tanto que leva sensivelmente 30 e poucos minutos a tecer uma introdução ao filme. Não estou habituado, mesmo sabendo que nem todo o cinema japonês se estrutura desta forma.

Comecei a sentir que o realizador Ryûsuke Hamaguchi poderia estar a fazer pouco de mim.

Provavelmente se este soubesse disto, prostrar-se-ia em contrição, tal que é a cultura japonesa de que humildade e responsabilidade se infundem num bule de chá com temperaturas altíssimas de percepcionado ocidental exagero. E aí, nessa psicologia invertida, dei por mim a baixar a altivez e recolocar-me no lugar que me é devido: aquele que vai consumir a arte que o artista produziu para consumo.

Deixei-me conduzir por esse Saab 900 Aero vermelho pelas curvas das montanhas japonesas de Hiroshima enquanto sentia os desníveis do asfalto dos fragmentos narrativos que desenrolam a história, e pelas rectas de muito slow-burn de paisagismo amplo de recolhimento do mundo exterior silencioso, para me fazer processar e atar tais fragmentos numa continuidade que me faça sentido, que me permita julgar os protagonistas, pensar sobre o que faria no seu lugar e qual o destino desta viagem, onde o ruído constante que me mantinha atento ao caminho eram as rotações paradoxalmente altas para com a velocidade de deslocação, como que me puxando para a presença do filme, da realidade daquele momento, da recordação constante de que a vida continua apesar de tudo, todos, nada, ninguém.

A representação satisfez a história. Afinal de contas, o elenco principal é composto de actores a fazer de actores para uma peça de teatro. Mais um detalhe que não é por acaso: toda a gente deste filme está ligada à representação. Será um subtexto de como o indivíduo é um actor na peça da vida, sabendo-o ou não?

A cinegrafia é objectiva, despretensiosa e serve muito mais de pano de fundo para dar imagem aos silêncios que propriamente conceber movimento ou fixação nas cenas. O que não é mau. Filmou-se conforme o que a história pediu.

Há um jogo interessante sobre o som. Consegui distinguir com estranha clareza as regravações de falas, pese-se a época outonal e localizações ventosas e abertas de muitas cenas. O que entenderia como fraca qualidade de mixagem, agora entendo como dispositivo de cativação da atenção do filme para o espectador. Para que se faça ouvir sobre o que quer dizer quando o subjacente realismo ditaria que os actores projectassem mais as falas ou simplesmente se fizessem os diálogos noutros enquadramentos cénicos. Ou então pensei demais sobre uma desculpa pelo fraco polimento do produto final. Se for isso, parabéns, filme. Estou vergado.

Não posso deixar de sublinhar que Drive My Car é ambicioso para apresentar ao mundo, principalmente o actual. O mundo que foi obrigado a parar abruptamente de viver as suas fachadas genuínas ou genuinamente a fingir que vive, é audazmente desafiado a parar de pensar que tem de parar para se envolver neste filme. É um preço alto que Drive My Car cobra para comprometer-se a apresentar perspectivas arrojadas sobre o que justificadamente seria resolvível por uma pessoa comum em 40 minutos.

Drive My Car conclui-se como começou: é um entendimento em desdobramento que conclui que a vida, as pessoas da vida e como nos relacionamos com elas tem muito mais de influência nossa sobre o que daí resultar que culpa delas pelo que não resulte.


Drive My Car
Conduz o Meu Carro

ANO: 2021

PAÍS: Japão

DURAÇÃO: 179 min.

REALIZAÇÃO: Ryûsuke Hamaguchi

ELENCO: Hidetoshi Nishijima, Tôko Miura, Reika Kirishima

+INFO: IMDb

Drive My Car

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