Houve um período em que a Pixar dominava todas as atenções no mundo da animação norte-americana, não havendo quem lhe fizesse frente.
A sua relação com a Disney há muito que era muito próxima e colaborativa, embora oficialmente só tenha sido aquirida pela gigante da animação em 2006 num negócio de 7.6 mil milhões de dólares! Desde aí, o estúdio, que manteve a sua independência criativa, tem continuado a criar inovadores projetos, sempre baseados em conceitos inteligentes e adultos, fazendo bem a ponte entre os mais variados tipos de público. No entanto, a pandemia chegou e, desde aí, a Disney habituou o público a ver os sucessos da Pixar na Disney+. O público – mais preguiçoso do que nunca – recusa-se a apoiar ideais originais no cinema e isso tem tido um impacto nas bilheteiras dos filmes da companhia. É pena. O talento, a originalidade e a relevância continuam a merecer salas cheias e será trágico se o foco da Pixar passar apenas para sequelas e afins.
Esta introdução revela-se necessária pois separar o estúdios dos seus filmes é tarefa difícil. Elemental tem muitas das imagens de marca da Pixar. Tem uma colorida animação que é belíssima – com detalhes incríveis que parecem mais realistas do que os da maioria dos filmes live-action e o seu cgi tosco -, tem personagens carismáticas e cria (mais) um admirável mundo novo que parece tão orgânico que nem parece ser criado pelo homem. Mas, mais importante ainda do que tudo isso – que tão belo é – são as temáticas trazidas para cima da mesa e a forma como elas são abordadas.
As personagens principais deste filme são Ember – que representa o fogo – e Wade representando a água. Eles são elementos que não se deveriam misturar, que não se deveriam sequer aproximar um do outro. Por um acaso, Wade, que é um inspetor da cidade, vai parar à loja do pai de Ember. Loja que está destinada a ser de Ember. Loja que representa os frutos visíveis de uma família de imigrantes que muito lutou para ter o seu cantinho e para ter algo do qual se possa orgulhar. Loja que Wade terá que reportar por vários incumprimentos que poderão levar ao encerramento da mesma. Ember convence-o a mudar de ideias, mas…será que ainda vai a tempo?
A premissa da história é mesmo tão simples quanto parece, sendo óbvio desde o início que estes dois irão viver o tal romance proibido. Não existe aqui um vilão, não existe uma história maior do que o mundo, mas existe uma história que poderia ser a de qualquer um de nós. Claro que sendo uma história sobre imigração, poderá tocar mais a quem imigrante é ou a quem convive de perto com tal realidade. Claro que sendo uma história que inclui racismo, preconceito, discriminação e segregação, iremos sempre ouvir as balelas dos que tudo hoje consideram ser “woke” ou doutrinação (eu chamar-lhe-ia de “educação”, já agora). Claro que sendo uma história com uma grande componente de legado e expetativas familiares, irá tocar mais aqueles que com pais cresceram – ou que pais são – e que sentiram ou sentem o peso dessas responsabilidades nas costas. No entanto, mesmo que vocês sejam as pessoas mais frias do mundo e sem o mínimo de empatia por histórias que não sejam do “vosso mundo”, há aqui, ainda assim, uma bonita, engraçada e simples história de amor para seguir. A cena em que Ember conhece os pais de Wade fará rir e aquecerá os corações do mais solteiro dos solteiros deste mundo!
Sim, Elemental é uma comédia romântica. A animação não é um género – como Guillermo del Toro tanto nos disse no passado ano – e de vários géneros e tipos de histórias se podem fazer belas animações. Aqui temos vários dos clichés presentes nas comédias românticas – a típica estrutura está cá, incluindo a zanga a anteceder o terceiro ato – mas tudo é feito de um modo tão divertido, tão aparentemente leve, mas com tanto significado e com tanto sentimento que é impossível resistir-lhe. As duas personagens principais são muito boas, carismáticas, distintas e cheias de personalidade, mas o destaque tem que ser dado a Ember, a jovem que em si incorpora quase todos as temáticas que o filme aborda, sendo isso feito de um modo inteligente e bastante orgânico. Nos aspetos técnicos, além dos excelentes visuais, a banda-sonora, de Thomas Newman, é outro dos pontos fortes de Elemental, com uma música calma e com várias influências de diferentes géneros e geografias que se adaptam na perfeição à história que está perante nós.
Recuso-me a confiar em alguém que saia de Elemental sem esboçar um enorme sorriso na cara durante a sua visualização. A animação é excelente, a banda-sonora incrível, mas felizmente não se limita a isso. É muito ambicioso na forma como aborda temas como a imigração, a discriminação, o racismo, a família, o legado e o amor, fazendo-o com sucesso. O melhor de tudo é que o faz enquanto diverte bastante, surpreendendo com excelentes personagens que fazem disto uma comédia romântica irresistível.
Há uma correção de entendimento a ser feita…quando Guilhermo del Toro afirma que a animação é um gênero ele está corretíssimo, pois a animação é um dos quatro gêneros do cinema, são eles: ficção (live action), documentário, animação e filme experimental.
Esses “macro-gêneros” acima estão para o cinema assim como os gêneros lírico, épico e dramático estão para a literatura; assim como a sonata e a canção estão para a música; é assim como a pintura figurativa e a pintura abstrata estão para a arte pictórica.
Já os gêneros mais conhecidos popularmente, tais como: comédia, drama, terror, romance, aventura, fantasia, thriller etc. são subgêneros narrativos presentes em todas as artes narrativas, desde a literatura, teatro, cinema e até games.
Logo, esses clássicos gêneros da arte narrativa estão presentes nos gêneros narrativos do cinema, seja no live action seja na animação.
Sou bacharel em cinema, roteirista e diretor audiovisual brasileiro, já exerci funções de crítico e professor de cinema.
Espero ter contribuído com este esclarecimento.