REVISUALIZANDO: Munique e a complexidade israelo-palestiniana aos olhos de um génio do cinema

O mundo choca-se hoje com o que se chocava há mais de cinquenta anos em Munique. O conflito israelo-palestiniano faz correr muita tinta e permite opiniões extremadas que, normalmente, estão longe das mais racionais. Garanto-vos que este texto não irá resolver o conflito e nem procurarei direcionar-vos para quem poderá ter ou não razão nisto tudo. É lógico que o assunto é muito mais complexo do que comentadores de sofá – ou de painéis televisivos – pensam que é e Steven Spielberg entende isso mesmo, sendo essa a maior vitória deste Munique

Na madrugada do dia 5 de Setembro de 1972, em plenos Jogos Olímpicos de Munique, um grupo de oito palestinianos, membros da organização terrorista Setembro Negro, invadiu a Vila Olímpica, raptando onze membros da comitiva israelita e exigindo como moeda de troca a libertação de presos relacionados com a causa palestiniana. Dois dos reféns israelitas morrerem quase instantaneamente depois de terem oferecido resistência. Os outros nove viriam a morrer quase um dia mais tarde, depois de uma desastrosa tentativa de resgate por parte das autoridades alemãs. O filme começa mostrando-nos de forma parcial esses acontecimentos, embora só nos mostre o que realmente aconteceu na tal falhada operação de resgate no seu ato final. Mas logo aí, na sua primeira cena, quando nos mostra o ataque e a notícia de que tudo deu errado já demonstra todo o seu impacto emocional, começando com uma toada muito violenta, chocante e fria. Sabendo que tem que reagir ao que aconteceu em Munique, o governo israelita decide então formar uma equipa com a missão de assassinar onze palestinianos, espalhados pela Europa, que terão tido conexão com os ataques na Alemanha. Esta é a premissa de Munique, mas o filme vai muito além disso, servindo esta “pequena” vingança de metáfora para tudo o que vai acontecendo no conflito entre Israel e Palestina desde 1947, com ênfase nas relações extremadas e ausentes de diálogo construtivo.

Confesso a minha parcialidade em relação a esta obra. Falha-me a memória se esta é a 4ª ou a 5ª vez que a vejo. Adoro tudo o que é feito. Seja a nível temático, a nível técnico ou na forma como nos diz o que quer contar, adoro cada segundo deste filme. Tecnicamente, há uma fotografia impecável, que nos coloca no tempo certo e com o tom cinzento que se exige. A edição é sensacional, nunca nos deixando aborrecidos num filme de 164 minutos. O som é poderoso, entra-nos pelo corpo dentro e arrepiando-nos. Mas os méritos técnicos quase nem precisam de ser referidos tal a complexidade, o texto e o sub-texto desta obra.

Isto nunca é um filme fácil. É um filme que, por vezes, custa a absorver, não porque seja chato ou aborrecido, mas sim porque retrata todos os acontecimentos com certos condimentos que muitos clamam faltar ao cinema de Spielberg. É verdade que Munique é um produto mui sui generis na carreira do realizador. A forma como a câmara se movimenta, a forma como filma o diálogo, a forma como nos coloca no centro de atenção, como se lá estivéssemos e não fossemos meros espectadores é tudo imagem de marca de todo o seu cinema. Até a nível temático, a família – sempre no centro das suas tramas – tem um enorme destaque nesta obra. No entanto, é um filme bastante sangrento, um filme violento, um filme com sexo, um filme com nudez, um filme, acima de tudo, bastante desesperançoso na sua visão do mundo, com um cinismo muito pouco habitual no cinema do mestre norte-americano. 

No entanto, Spielberg não é apenas norte-americano. Spielberg é também um dos judeus mais influentes do mundo. Ele sabia que iria ser escrutinado de cima a baixo e que o seu filme iria sempre ter os seus críticos. A resposta que ele decidiu dar foi fazer de Munique uma obra surpreendentemente imparcial. Não se pense que o filme o faz dando o mesmo destaque “aos dois lados”. Não. Isto é um filme baseado num livro escrito por um judeu (Vengeance, de George Jonas) e com argumento para cinema de Tony Kushner e Eric Roth, dois judeus. Isto é uma obra toda ela vista da perspetiva israelita e da tal vingança e isso é o que faz sentido. Nas mãos destas pessoas – que por muitas boas intenções que tenham, terão sempre a parcialidade da sua criação e influências que os rodeiam – nunca nos iria ser dada uma perspetiva palestiniana tão boa quanto israelita. No entanto, Munique é fascinante na forma como coloca todas as dúvidas quase sempre – com a exeção de um explosivo encontro entre judeus e muçulmanos em Atenas – sob o ponto de vista dessa única parte do conflito. As dúvidas que inicialmente apenas estão na cabeça de alguns (mais experientes) integrantes da equipa começam a alastrar-se a outros elementos mais jovens e isso acaba por incluir o líder da equipa contratada para matar palestinianos. Avner, vivido exemplarmente por Eric Bana (de longe, o melhor papel da sua carreira), é alguém que vai perdendo a ilusão e a inocência com o decorrer do filme e toda essa transformação é fascinante. Até à inspirada cena final com as torres gémeas de Nova Iorque como plano de fundo, relembrando-nos onde toda a violência vai sempre desaguar: na perda de vidas humanas inocentes.

 

We are supposed to be righteous. That’s a beautiful thing. And we’re losing it. If I lose that, that’s everything. That’s my soul.

 

There is no peace at the end of this.

 

Avner: We can’t afford to be that decent anymore.

Robert: I don’t know if we were ever that decent.

 

Every man we’ve killed has been replaced by worse!

 

All of this blood comes back to us.

 

Avner: You kill Jews and the world feels bad for them… and thinks you animals.

Ali: Yes. But then the world will see how they’ve made us into animals. They’ll start to ask questions about the conditions in our cages.

São tantas as passagens que podemos citar de Munique que até parece que nos está a ser dada uma aula de história. De uma história viva, de uma história em movimento, de uma história que não tem vencedores e que no final apenas terá como consequência muitos perdedores. Perdedores pelo ódio, pela violência, pelo sangue. Numa poderosa cena de sexo já perto da conclusão, Spielberg arrisca como poucas vezes fez na sua carreira. Vemos essa cena intercalada com o nosso protagonista a pensar e a visualizar os acontecimentos daquela fatídica madrugada de Munique. Sexo consentido entre duas pessoas que se amam. Algo que deveria ser sinónimo de alegria, excitação, vida. Mas até aquele simples ato é demasiado doloroso, pois o nosso protagonista sente-se impotente, não conseguindo esquecer as imagens de sangue e horror. Tudo tão doloroso porque depois de tudo o que viu e fez, Avner confunde vida com morte. Será que valeu a pena? Será que violência gera algo mais do que mais violência? Será que de vingança em vingança, o sangue inocente irá algum dia deixar de ser derramado?

Cheguei até aqui e dei-me conta que ainda nem sequer referi uma das tramas de Munique que mais gosto: a que envolve os “franceses”. Aquela família abastada vive bem. É uma família como outra qualquer: com problemas, com ciúmes, com amores e desamores. O chefe de família até parece alguém bastante afável e com quem se devem passar belas horas de conversa. É alguém que se preocupa com os que considera seus próximos – mas não família! – e que tem uma visão muito desapaixonada e racional de todos os conflitos. No entanto, é alguém que vive exclusivamente deste mundo de sangue e dor. Alguém que ajuda a matar, que facilita o trabalho e alguém a quem pouco lhe importa quem está certo ou errado. Alguém que até tem um passado de vítima. Mais uma das complexidades deste mundo podre, hein…?

Steven Spielberg, judeu, sabe que o conflito israelo-palestiniano é complexo e que culpados e inocentes existem dos dois lados da barricada. O facto do filme ter sido apelidado de pró-Palestina por israelitas e de pró-Israel por palestinianos diz-nos que o cineasta acertou em cheio na mensagem que quis passar. Além disso, ainda nos brindou com uma obra-prima cinematográfica.

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