O relato de uma história cruel e desumana; o pesar de uma voz maltratada por uma longa e árdua jornada; o desabafo da revelação de um segredo há muito ocultado por alguém que carrega o fardo de uma vida inteira de verdades oprimidas.
A intimidade nos atinge com a honestidade da fala mansa de Amin. Flee parece ser mais que um documentário, e vai além de um drama inacreditável de uma realidade distante, vivenciada por estranhos/estrangeiros coitados/inalcançáveis. Flee envolve pois nos confia o direito de ouvir Amin como um amigo que estende a mão para que o aflito desabafe suas mazelas.
Dos dilemas perante sua sexualidade, passando pelo abuso de poder das autoridades, até o tráfico humano. Vislumbramos o horror de uma vida desesperadora acompanhados de um trabalho musical original esplendoroso e imersivo que ilustra a jornada de Amin tão bem quanto a animação que dá vida às imagens que vemos em tela. Uno Helmersson (compositor) consegue a difícil proeza de se destacar entre as músicas escolhidas a dedo de artistas como a-ha e Low Roar. Uno compõe com a sensibilidade de um artista e a sinceridade de um confidente, que escuta com atenção e carinho, e dá origem a um trabalho dolorosamente humano.
A arte de traçado simples e gentil conflita com a realidade dura a qual Amin e sua família lidam diariamente. É interessante a decisão criativa, pois parece conversar bem com a personalidade de Amin, que demonstra uma serenidade impressionante ao falar de seus diversos traumas. A simplicidade da animação só se vê ausente em momentos específicos de sua história, como eventos extremamente caóticos ou memórias nebulosas, dando espaço para artes mais abstratas e simbólicas, ou imagens reais de ambientes e localizações importantes em sua trajetória.
O resultado dessa mistura de abordagens criativas parece ser uma fiel tradução da complexidade sentimental de uma pessoa que vive em meio ao verdadeiro caos. É deslumbrante acompanhar uma obra que entende tão bem sua personagem central e nos ajuda a mergulhar em seus dilemas e conflitos internos e externos.
Não é fácil ouvir o que Amin tem a dizer em seu comovente relato, muito menos digerir tudo após o final do filme. Flee é impactante e é certamente difícil adjetivá-lo com belos elogios. Porém, apesar de achar que revoltante ou desolador sejam formas mais justas de descrever o documentário, ouso permitir-me a total sinceridade e afirmo que Flee é lindíssimo e merece toda aclamação que vem recebendo.