Revisualizando: Get Out, o filme que só poderia ser de Peele

É impossível começar a falar de Get Out sem imediatamente mencionar o seu escritor e realizador: Jordan Peele. Peele, que até então era visto como um bem-sucedido comediante, assumiu a sua primeira longa metragem com unhas e dentes e logo num género onde muitos nunca o imaginaram ver a brilhar. Get Out é um daqueles casos em que o seu criador fica tão associado à obra em questão que não há como fugir dela caso ela seja um enorme sucesso ou caso seja um enorme fracasso. Felizmente para Peele – e para todos nós – aqui falamos de um enorme sucesso que viria a mudar o cinema do terror como poucos filmes foram capazes de o fazer na época moderna, continuando cinco anos depois a influenciar uma série de filmes usualmente apelidados de “terror social”.

Visualizando Get Out, há óbvias razões para perceber por que razão o seu autor levou a obra tão a peito e de forma tão pessoal. Peele é negro, tal como a personagem principal da história. Mas mais do que a personagem principal, Get Out é quase todo ele acerca do que significa “ser negro”, do que se vai ouvindo aqui e ali, dos obstáculos enfrentados, mas fá-lo de um modo ainda mais inteligente do que seria o esperado: não faz esse comentário tendo em conta a perspectiva de brancos evidentemente racistas, fá-lo sim através de brancos que se veem e muitas vezes são vistos como “aliados”; brancos que admiram a raça negra de tal forma que gostavam de ter para si muitas das suas características físicas, não se importando, ainda assim, com o que esse indivíduos significam ou são de forma individual, como pessoas, subjugando-os ao que destes querem utilizar, tal-qual a força bruta dos tempos da escravidão.

Há certos elementos da crítica social de Get Out que são fáceis de associar com um certo racismo mais escondido – gosta-se de se ver negros dançar, cantar, exercitar; gosta-se de os ver como fonte de espetáculo, mas não se reconhece os mesmos como iguais que têm tantos direitos quanto outros quaisquer a querer ou não ser parte desse espetáculo. Isso é claro quando vemos as personagens que participam no leilão pela personagem de Chris, irrepreensívelmente interpretado por Daniel Kaluuya, no que será sempre um dos papéis da sua vida. Para quem tem qualquer tipo de dúvidas, aí fica claro de que não se trata apenas da “busca por um corpo perfeito”. Fica claro de que só brancos podem ser os compradores daqueles jovens negros e que, portanto, existe uma clara assunção de superioridade racial intelectual.

Recordo-me que quando vi o 1º trailer de Get Out – em outubro de 2016 – considerei-o algo inovador, super-interessante, que me abriu de imediato o apetite. Depois li os comentários nas redes sociais e dei-me conta de que a maioria dos mesmos gozava com o o video, referindo que o trailer parecia bastante mau e que se via que só poderia vir de um comediante. O que muitos queriam dizer era “comediante negro”. Nunca ninguém se importou muito quando Jim Carrey ou até Ben Stiller se aventuraram por projetos sérios, todos os levaram a sério. Mas um comediante negro? Isso já é mais difícil de visualizar. É por isso também claro que Get Out só poderia ser feito por um negro, por quem sente todas essas dificuldades e tem que ultrapassar obstáculos desde que pensa em fazer algo diferente daquilo que é a convenção social.

Jordan Peele não se limitou, de qualquer forma, a fazer um filme unicamente pontuado de comentário social, daqueles que pretendem doutrinar a audiência. Get Out é profundo e bastante inteligente na forma como nos apresenta as suas conclusões ou, simplesmente, as suas sugestões. Ao mesmo tempo é um thriller de suspense super eficaz que demora a soltar todas as suas cartas, sabendo exatamente o que tem na manga, brincando com a sugestão e com o mistério, com pequenas pistas aqui e ali, que deixarão a salivar qualquer fã do género. Get Out levou mesmo para casa o galardão de melhor argumento original na noite dos Óscares, além de ter sido nomeado para Filme, Realização e Ator Principal, algo totalmente impensável para um filme do género tantas e tantas vezes ignorado pela Academia. Outros elementos devem ainda ser destacados. Além de uma banda-sonora bastante bem enquadrada com a atmosfera pretendida, toda a montagem do filme parece construída de forma a encaixarmos as peças do puzzle para uma louca conclusão.

Quanto a cenas marcantes, Peele provou que tem tudo o que é preciso para ficar na história do género. Uma única noite mal dormida da personagem principal é capaz de nos dar uma inesquecível cena de um estranho empregado que parece um velocista a treinar a meio da noite, bem como uma incrível sessão de hipnotismo que nos leva para o Sunken Place. E logo no dia seguinte vem o prato forte, seja com a perfeita cena protagonizada pela “criada” – sim, criada – no quarto, quer depois quando voltamos a reencontrar uma personagem raptada nos momentos iniciais do filme que, de repente, se passa completamente! O comentário de Peele nunca decresce, e vem mesmo a culminar numa cena final que é uma clara referência ao clássico A Night of Living Dead, mas com uma conclusão bem diferente que também tem o seu significado: não desta vez, desta vez os negros vencem mesmo!

A poucos dias da estreia de Nope, nunca é demais relembrar que Get Out é um dos filmes mais importantes das últimas décadas, existindo muitas razões para isso. Jordan Peele acertou em todas as notas e ofereceu-nos um clássico intemporal que irá ser estudado e servir de referência absoluta por muitos anos.
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