Filmes em contexto de guerra que não são automaticamente filmes de guerra sempre me interessaram muito. Recentemente, o mundo pôde apreciar a mestria com que Christopher Nolan trabalhou a temática em Oppenheimer e exemplos não faltam no passado mais ou menos longíquo. Um dos melhores de sempre fala-nos da mesma guerra e é uma animação japonesa chamada Grave of the Fireflies.
Esta história mostra-nos os meses finais da 2ª Guerra Mundial sob a perspetiva de um rapaz de 14 anos, Seita, e da sua irmã de apenas quatro anos de idade, Setsuko. Depois de uma bomba cair em Kobe, os manos são obrigados a aprender a sobreviver, a lutar pela vida, a serem adultos como a maioria dos adultos nunca será, felizmente, obrigada a ser. Se alguém me lê com frequência, já sabe que eu não gosto de entrar em muitos detalhes da trama, pois acredito que os filmes são melhor experienciados sabendo o menos possível sobre eles. Ainda assim, um aviso tem que ser dado: preparem os lenços e preparem o vosso coração para o vendaval que aí vem.
Algo que precisam de saber sobre Grave of the Fireflies – que fica claro desde a cena inicial – é que este é um filme profundo. Um filme animado que pode ser mostrado a todos, mas um filme em que só os adultos – ou adolescentes mais experimentados – terão capacidade para absover todas as suas mensagens e golpes que nos vai dando. A animação é bela, mas de tão bela que é, ainda mais nos afeta a todos quando se encontra com a história que vai desembrulhando. A música é de uma beleza ímpar, muito cuidada, muito calorosa, muito marcante, servindo de alavanca destruidora do nosso lado mais sentimental. A edição e a narração também estão ao nível do que melhor alguma vez foi feita no cinema de animação, mas não é nos aspetos técnicos que me quero centrar.
Por muito que o realizador, Isao Takahata, tenha dito que este não é um filme anti-guerra, a verdade é que esse será sempre o sentimento evocado em todos nós após a sua visualização. Isso acontece porque estamos durante 89 minutos confrontados com o maior choque das várias realidades de guerra exploradas no ecrã.
Quando não há bombas, quando não há ameaças, Seita e Setsuko brincam como crianças e jovens normais. Divertem-se, ao sol e à chuva, divertem-se nos campos abertos e nos espaços fechados, como se tivessem toda uma vida pela frente. Quando as bombas caem, o mundo fica mais feio, demasiado feio e aos irmãos pouco mais resta do que lutar pela sobrevivência. E, mesmo que o consigam, todo o pós-bomba é devastador. Mata tudo à volta. Mata vida humana, mata vida animal, mata aquilo que pode dar de comer aos irmãos. Polui céus, polui águas, polui almas. Não mata, ainda assim, a vontade dos irmãos se divertirem e de em tão pouco arranjarem sempre muito. Para nos aquecer o coração e para o partir em dois.
Quando os irmãos estão alegres e livres, só nos apetece ficar ali, naquele mundo, com eles, durante horas e horas. Por essas alturas, até desejaríamos que isto fosse uma série de várias temporadas. Fazem-nos acreditar num mundo melhor, fazem-nos acreditar nas crianças e acreditar que todos nós podemos voltar a ser um bocadinho crianças de vez em quando. Quando os irmãos passam por dificuldades, nós apenas queremos que aquilo tudo passe depressa e que o presságio da cena inicial possa ter uma qualquer outra explicação.
A arte não deve ser fácil nem deve servir apenas para aquecer a nossa alma. A arte de Grave of the Fireflies é do mais belo já feito. E crú. É vida, é morte. Poucos filmes em live-action parecem mais reais do que este. E, por outro lado, não consigo imaginar como é que isto poderia resultar melhor com atores de carne e osso. A inocência cartoonesca é chave para que tudo tenha o impacto que tem. As fortíssimas mensagens que nos são passadas sobre a família, sobre resistência, sobre luto, sobre sobrevivência, sobre o auxílio ao próximo, sobre o nacionalismo ou sobre as nossas convicções caem muito bem a um formato que associamos como algo mais leve. É uma mistura de calor e frio que torna tudo mais digestível. Até quando nos apresenta algumas ações das personagens principais que poderão ser eticamente questionáveis. Existirão, neste contexto, escolhas certas? O certo e o errado, por vezes, confundem-se. Por vezes, a opção é apenas entre o errado e o muito errado. Entre sobreviver e não sobreviver. Todos vivemos perante dilemas no nosso dia a dia. Esperemos que nunca tenha que ser a este nível, mas este é um filme que nos faz pensar em muito. Em tudo. Nos que nos rodeiam, na forma como vivemos a nossa vida, no que queremos mudar daqui para a frente.
Grave of the Fireflies é um dos poucos filmes perfeitos na história do cinema e, também, um dos mais devastadores. Tudo o que se vê é belo do ponto de vista técnico, mas tudo isso impactará ainda mais na hora de abrirem o vosso coração e soltar os lenços para chorarem baba e ranho. A alma do filme recai em dois irmãos que, sem o dizerem, nos dizem tudo o que é preciso dizer sobre a guerra. Um filme que nunca sairá da minha memória.