ESPECIAL MOTELX: Holy Spider é um brutal e magnífico ataque social

Poderá ter chegado bem cedo o filme que marcará esta edição do MOTELX. Holy Spider tem traços do cinema de terror – ou não fosse Ali Abbasi o homem por detrás de Shelley -, mas é, acima de tudo, um poderoso thriller fortemente marcado pela crítica que faz à sociedade que nos apresenta, deixando fortes ataques a tudo o que há de mais tóxico na mesma. Política? Check. Religião? Check. Forças policiais? Check. Imprensa? Check. Patriarcado/machismo? Check.

A história do filme fala-nos da cidade sagrada de Mashhad, no Irão, que tem vindo a ser assolada por uma série de homicídios que têm um padrão claro: apenas são assassinadas mulheres que se prostituem nas ruas da cidade. O serial killer – e a sua identidade não é aqui um mistério – afirma estar a cometer os crimes de forma a fazer uma limpeza da cidade em nome de Allah. A polícia pouco parece querer fazer para evitar uma série de crimes que seguem sempre o mesmo padrão. Certos segmentos do Islão parecem muito pouco incomodados com tudo isto porque afinal o crime é das “impuras” que “corrompem” os homens. A forma como Abbasi procurou dar praticamente o mesmo destaque ao serial killer – Saeed, impecavelmente interpretado por Mehdi Bajestani – como a quem se revela ser o seu maior adversário – a jornalista Rahimi, numa impressionante e bem nuanceada interpretação de Zar Amir Ebrahimi – permite-nos perceber ambos os lados. Perceber, não concordar. Perceber mentes que foram formatadas – através dos vários poderes formais ou informais – a pensar de uma determinada forma e que também passam esses ensinamentos a gerações futuras.

Os primeiros dois atos seguem muito a vertente investigativa e a tensão que marcam alguns clássicos do género – claro que o nome de David Fincher vem à cabeça como uma das grandes influências – mas desenganem-se os que pensam que o filme apenas se limita a ser um thriller de serial killer. Não. Desde cedo, há críticas a toda uma sociedade que tem regras para uns e regras para outros. Uma sociedade onde uma mulher ainda é vista como inferior, necessitando de autorização até para alugar um quarto de hotel, sendo vista como incompleta sempre que não tem lides domésticas e um marido para cuidar. Abbasi vai-nos dando várias facadas – ao contrário do assassino que prefere estrangular – de forma aguda e crua, ora observando a inteligência e frustração de Rahimi, ora vendo como a mesma é obrigada a calar-se face a abusos sexuais de quem…infelizmente, neste tempo e espaço, é visto como superior. O mesmo sentimos quando seguimos pequenos fragmentos da vida daquelas mulheres que, por fruto da falta de meios, têm que ser o que não querem ser. É o que a sociedade as obriga a fazer como meio de sobrevivência. Vítimas a dobrar. Vítimas de uma sociedade que as abandonou e vítimas de uma sociedade que ainda as vê como culpadas.

No terceiro ato, o filme muda completamente. Tudo fica a nú de todos e surpreendentemente – ou talvez não… – há toda uma franja da sociedade que está do lado do serial killer, perdão, do justiceiro, segundo estes. Isto inclui mulheres. Isto inclui crianças. E claro que só poderia incluir. Afinal elas apenas podem seguir as regras e as limitações de pensamento próprias da cultura onde estão inseridas. E é por isso que a cena final de Holy Spider – que à partida até poderá parecer banal – é tão impactante. No final, e sem spoilar, acaba por refletir a crueza de todo o filme, que faz o excelente papel de retratar e criticar toda uma cultura presa sob amarras do passado e do presente.

Tecnicamente, Holy Spider é tudo o que deveria ser. Sempre acompanhado de uma composição sonora sombria e pesada, os tons negros do filme são realçados através de uma bela fotografia. Mesmo quando estamos em ambiente aberto, as escolhas de Abbasi transmitem-nos uma certa sensação de claustrofobia que certamente representa o que aquelas mulheres sentem no seu dia a dia. Holy Spider é um thriller recheado de tensão, violência e boas interpretações. Mas vai bem além disso. A crueza com que nos fala e critica uma sociedade controlada pelos poderes instaurados – formais ou não formais – irá certamente causar a ira de muitos. Este é um filme sem medo. Assim como os tempos exigem.


Holy Spider
Holy Spider

ANO: 2022

PAÍS: Dinamarca, Suécia, Alemanha e França

DURAÇÃO: 116 minutos

REALIZAÇÃO: Ali Abbasi

ELENCO: Zar Amir-Ebrahimi; Mehdi Bajestani; Arash Ashtiani; Forouzan Jamshidnejad

+INFO: IMDb

Holy Spider

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