A Fome de uns e de outros

Filmes com comida – ou cozinha – sob pano de fundo têm tido destaque nos últimos anos. No último ano tivemos o excelente britânico Boiling Point que nos mostrou como as coisas nem sempre são um mar de rosas. Também na moda têm estado os filmes sobre disparidades sociais e de como ricos e pobres não parecem fazer parte do mesmo mundo. Poderíamos ir até ao sucesso de Parasite, mas podemos ficar por uma magnífica obra do ano passado chamada Triangle of Sadness. E depois há aqueles que tentam juntar essas duas temáticas, como no ano passado tivemos em The Menu. Hunger segue muito essa linha de The Menu. Embora não seja um filme onde irão ver pessoas a ser assassinadas a sangue frio, é um filme que procura fazer o mesmo tipo de comentário social, incluindo também a comida, mais concretamente a cozinha neste caso, como pano de fundo. 

Na história, uma jovem (Aoy) gere um restaurante familiar de street food, até que um dia recebe um convite para deixar o negócio e se juntar à equipa de ‘Hunger’, a primeira equipa de chefs de luxo da Tailândia, liderada pelo famoso Chef Paul. Paul é conhecido por ser tão genial quanto insuportável e isso, obviamente, irá levar a vários momentos de tensão. A primeira coisa que nos salta à vista são os excelentes valores de produção. Produções tailandesas têm subido o seu nível a uma velocidade vertiginosa e esta produção da Netflix não é exceção. A fotografia é muito cuidada, a edição própria de grandes estúdios a manter-nos tensos e colados ao ecrã e uma realização de Sitisiri Mongkolsiri que está no controlo de todos os elementos. E isso inclui a direção de atores. Este filme tem duas enormes forças no campo das atuações. Dois atores com provas dadas e dois atores que comandam as cenas atraindo para si todo foco ao concentrar todo o espaço negativo em cena. 

Consta que Chutimon Chuengcharoensukying era modelo antes de enveredar pela carreira de atriz. Não seria capaz de o adivinhar. Não porque fisicamente ela não tenha características para tal, mas sim porque ela é uma atriz com tudo o que se pode esperar de uma atriz. Tem carisma, domina a cena, é capaz de demonstrar tudo o que sente sem palavras, mas também capaz de elevar o diálogo com excelentes entregas na fala. Não é a primeira que a vejo – Bad Genius e Happy Old Year são duas excelentes obras tailandesas – e sempre foi destaque, não sendo aqui exceção como a protagonista principal desta história. Uma protagonista com falhas mas que tem o coração no sítio certo. Como seu antoganista está o chef Paul, vivido por Nopachai Chaiyanam. Que prestação! Frio, calculista, vingativo, realista, desiludido, especialista no que faz e com consciência daquilo que é e do que a sociedade o permitiu ser. Será ele um vilão? Um pouco como acontece com o professor Fletcher em Whiplash – e este filme tem muitas similaridades com essa obra também na relação entre mestre e pupilo é demasiado redutor atribuir-lhe esse papel. O seu comportamento está longe de ser o melhor, é muitas vezes reprovável, é tóxico e demasiado agressivo. Mas tudo é também um reflexo do que a vida o ensinou a ser, uma personagem com muitas camadas e demasiado complexa para juízos de valor absolutistas que, acima de tudo, alcança resultados.

O maior pecado de Hunger é que “nos compra” com um primeiro ato excecional e depois tem dificuldade em manter-se à altura do que anteriormente nos deu. Introduz um romance totalmente desnecessário e apressado que nunca nos fez querer ver muito mais dele e a nível narrativo não consegue soltar-se e atingir todo o seu potencial, seguindo um caminho previsível. A conclusão – tal como aconteceu em Bad Genius – é apressada e pouco satisfatória. Percebe-se exatamente o que quer dizer e percebe-se o arco da personagem principal, mas é demasiado “Disney” na forma como o coloca em prática. No entanto, não se assustem. O filme nunca desce a um mau nível, tem sempre um bom ritmo – apesar da sua claramente excessiva e injustificável duração -, é tenso e as suas personagens principais continuam sempre tão carismáticas quanto o foram inicialmente. Só não atinge a excelência que cheguei a pensar ser possível. 

A nível de comentário social, Hunger é, de qualquer forma, um filme bastante eficaz. É de destacar principalmente a forma como utiliza o seu título para nos demonstrar que todo o mundo tem fome, só que uns têm fome de uma coisa – comida – e outros têm fome de outras coisas – estatuto, fama -, fazendo-o através de exemplos práticos e algumas fascinantes cenas. Afinal, até o que comemos nos separa e nem tudo o que comemos tem a mesma finalidade.

Ainda que vá por caminhos previsíveis e nem sempre mantenha a excelência do primeiro ato, é um filme com excelentes valores de produção, suportado em duas excelentes atuações, que nos dá uma história de auto-descoberta sempre atual, apimentando-a com um assertivo comentário social sobre como o que comemos revela sobre nós.


Hunger
Fome

ANO: 2023

PAÍS: Tailândia

DURAÇÃO: 146 minutos

REALIZAÇÃO: Sitisiri Mongkolsiri

ELENCO: Chutimon Chuengcharoensukying; Nopachai Chaiyanam; Gunn Svasti Na Ayudhya; Bhumibhat Thavornsiri

+INFO: IMDb

Hunger

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