Akira Kurosawa. O nome impõe respeito como poucos na história do cinema. Muitos deliciaram-se com Seven Samurai e é indesmentível o quão influente veio a ser para uma série de filmes e histórias nas décadas seguintes. Muitos admiraram a incrível estrutura de Rashomon e tudo aquilo que procurou dizer. Outros espantados ficaram com High and Low, um thriller policial inteligente que serve também como uma enorme critica a certos setores da sociedade. Eu, mesmo apreciando essas obras, encontrei o “meu Kurosawa” em Ikiru.
Ikiru é um filme dramático. A premissa é, na realidade, do mais dramático que pode existir: um homem próximo da idade da reforma, Kanji Watanabe, descobre que tem poucos meses de vida e tenta nesses meses dar um significado diferente à sua existência. Apesar desta premissa, o primeiro grande mérito de Akira Kurosawa é que não perde muito tempo com lamentações nem faz disto um exercício exploratório de pena por aquele cidadão. Sim, claro que existem momentos em que conseguimos empatizar com a personagem e nos sentimos devastados só de pensar que aquilo poderia – pode – acontecer a qualquer um de nós. Claro que dói ouvir familiares dizer coisas nas costas que nunca gostaríamos de ouvir. Mas Kurosawa não se quer prender aí e o filme rapidamente deixa de ter amarras, dando-nos algumas inesperadas situações caricatas onde Watanabe descobre alguns dos prazeres da vida aos quais sempre foi alheio. Watanabe, no entanto, sabe que não tem tempo para viver tudo o que não viveu e sabe que excessos não irão colmatar o buraco que tem aberto na sua alma. Ele quer deixar uma marca no mundo. Quer fazer algo que não só preencha os seus últimos dias de vida, mas que, acima de tudo, sirva para ajudar a comunidade , com um real impacto para todos. E quando Watanabe se descobre, nós descobrimos também muito do que o génio japonês nos quis dizer.
A interpretação de Takashi Shimura no papel principal é irrepreensível. Um olhar chega. Um olhar que mostra o vazio. Um olhar que mostra o medo. Um olhar que mostra remorsos. Um olhar que mostra uma assustadora e ténue felicidade acompanhada de nostalgia. Um olhar que mostra preserverança. Um olhar que mostra calma e uma sensação de dever cumprido. Na verdade são muitos os olhares, mas tudo através daqueles dois olhos que têm uma capacidade incrível de dizer muito do que fica por dizer através da boca e das palavras que dela saem. Se aqui chegaram já perceberam que um dos principais temas de Ikiru tem a ver com a forma como vivemos as nossas vidas e em como a vida deve dar sentido à nossa morte. A forma como nos relacionamos com os outros e com o que nos rodeia. Afinal, Watanabe não era um homem perfeito. Era um homem com defeitos. Um burocrata numa sociedade burocrata que parece querer sempre arranjar motivos para impedir algo em vez de procurar encontrar soluções.
Foi a certeza da proximidade da morte que fez Watanabe despertar quando já havia desperdiçado grande parte da sua vida, não tendo uma relação próxima nem com o seu filho. Mas despertou. Watanabe foi atrás de tudo e de todos para dar um sentido aos seus últimos dias, decidindo que iria lutar pela construção de um jardim que a comunidade há muito exigia e que por todos os burocratas era negado. Um jardim que poderá parecer coisa pouca mas que seria a marca do impacto daquele homem, a marca que ele em poucos meses conseguiria deixar neste mundo provando que nunca é tarde demais para fazer a coisa certa. O terceiro ato é outro soco no estômago. E inesperado, eu diria. Quando os mais próximos de Watanabe procuram analisar os seus últimos meses e algumas das suas decisões, aos poucos vão percebendo como ele mudou e porque é que ele o fez. Aos poucos chegam à conclusão de que eles próprios são, simultaneamente, vítimas e culpados daquela sociedade, daquele comodismo, daquele entrave e, claro, prometem que irão fazer de tudo para que daí para a frente retirem o melhor das suas vidas contribuindo para uma melhor sociedade.
Acontece que Kurosawa é – no presente porque ele continuará sempre vivo – um sonhador, mas não um utópico. Ele conhece o comportamento humano. Ele sabe que promessas vão com o vento e sabe que no dia seguinte tudo volta exatamente ao mesmo ponto. E mostra-nos isso em algumas das cenas finais, o que em nada retira o impacto do sucesso de Watanabe naqueles seus últimos meses. Afinal, todas as mudanças partem de nós próprios, deveremos mudar por nós e para nós, dando um maior sentido a quem nós somos.
Muito o filme tem a dizer sobre inação. Inação política, inação de organizações estatais, inação pessoal. Muito nos diz também sobre relações familiares e sobre a necessidade de nos mostrarmos para sermos vistos. E faz o contra-ponto. Há também a necessidade de saber escutar e ler todos os sinais de forma a que não percamos oportunidades que nunca mais voltarão. A palavra que ficou por dizer. O sentimento que ficou por demonstrar. A vida que ficou por viver. É, portanto, acima de tudo, uma chamada para a ação. Um alarme. Uma chamada para acordarmos para a vida.
Ikiru tem 70 anos mas é um filme intemporal. Tão intemporal quanto aquele belo plano no baloiço. A vida continua a ser um mistério e nós continuamos a não sabê-la viver, mesmo quando temos noção que podemos e devemos fazer melhor. Kurosawa fere-nos no coração porque não fala apenas de um homem nem de uma sociedade. Ele fala de todos nós.