Joyland: arte, opressão e censura

Joyland é estruturado por um ambiente patriarcal tóxico, onde os oprimidos e os opressores são vítimas de uma mesma cultura conservadora limitante e violenta. É um retrato tão fielmente transgressor da realidade paquistanesa, que a opressão abordada em cena transborda para além da tela, e agride o próprio filme.

Haider (Ali Junejo) é o caçula de uma família tradicional paquistanesa. Há muito desempregado, consegue trabalho como dançarino de apoio de Biba (Alina Khan), uma sedutora mulher trans com quem desenvolve uma relação intensa. Tentando adequar-se à nova rotina e manter a verdadeira natureza de seu novo serviço escondida de seu pai, Haider enfrenta dificuldades com sua esposa, além de lidar com a incessante cobrança de sua família por um filho que dê sequência a sua linhagem.

Haider sente-se constantemente diminuído. Com dificuldades para conseguir emprego, cedeu o lugar de provedor da família para sua esposa, diferentemente dos princípios defendidos por seu meio familiar. Mas sua ansiedade perante às cobranças socioculturais com as quais lida não acabam por aí. Haider não é exatamente o modelo de homem que se espera dele. Tímido e sensível, ele encontra em sua esposa, Mumtaz (Rasti Farooq), a confiança e firmeza para manter a estabilidade do seu lar. Assim, Mumtaz assume o papel destinado a ele de chefe de família, mesmo que implicitamente. É como se Haider fosse culturalmente capado por não atender às demandas exigidas para ser considerado um homem paquistanês de valor.

Assim sendo, por mais revoltante que seja ver Haider trair a confiança de sua esposa, com quem mantém uma relação saudável, é totalmente compreensível que ele se deixe levar pela tentação. Aos seus olhos, Biba é exótica, sexy e, principalmente, libertadora. Com ela, Haider não só tem a chance de experimentar novas sensações e aventurar-se por caminhos alternativos aos quais aprendeu a seguir com os valores que lhe foram pregados de berço, como tem a liberdade de ser quem ele realmente é, um homem inseguro e, muitas vezes, submisso aos demais, sem ser realmente julgado por isso ou cobrado para ser diferente.

Por outro lado, Mumtaz, sua esposa, é contida e censurada de suas ambições em um nível inversamente proporcional ao da “libertação” de Haider. Privada de trabalhar e crescer na sua carreira, Mumtaz é submetida a ser a dona de casa provedora da prole de seu marido. Um papel que está muito aquém do que ansiava exercer na sociedade.

Em Joyland todos são vítimas do conservadorismo que os acompanha no dia-a-dia, moldando seus preconceitos e estruturando suas ansiedades. Biba, a empregadora de Haider, é muito determinada e vocal, pois assim é exigido dela. Sua natureza é estranha, ou melhor dizendo, absurda aos olhos da sociedade, chegando ao ponto de nem mesmo seus empregados, dos quais insiste em tratar com autoridade e rispidez, a levarem realmente a sério. Biba é combativa e muito agressiva, e assim é pois se vê em uma constante guerra contra seu próprio povo, que a recebe com violência e descaso pelo simples fato de não ser o que se esperava que ela fosse.

E no centro familiar de Haider, o líder de sua família, seu pai (Salmaan Peerzada), que talvez seja simbolicamente no filme o maior oposto à Biba, apesar de personificar a cultura patriarcal paquistanesa, também apresenta traços de fragilidade emocional. O patriarca é rígido e censura a todos constantemente. Todavia, é interessante perceber como, ao longo da obra, o homem vai deixando o posto de “vilão” da trama, e se encaixa entre os demais como mais um sintoma inevitável de um sistema doente e instável. O pai de Haider já não é mais jovem, e tem a saúde frágil. Não consegue mais tomar com tanta firmeza as rédeas de sua família, pois não é capaz mais nem sequer de tomar conta de si mesmo sozinho. É um homem frustrado por precisar dos outros para lidar com suas fragilidades, e que, por não poder conter como deseja aqueles que o cercam, pode vir a perceber que talvez seu conservadorismo faça mais mal do que bem a sua família.

Joyland é um protesto contra as mazelas proporcionadas pelo conservadorismo. É forte, sincero e provocativo e, por conta disso, acabou sendo censurado no Paquistão.  A decisão do governo paquistanês não foi bem recebida por parte da população, que respondeu com protestos, o que levou, posteriormente, à liberação da carreira comercial do filme em sua casa, sendo mantido sob censura unicamente no estado de Punjab. A censura sofrida por Joyland é triste e revoltante, mas é um sinal de que o filme é efetivo enquanto arte. Arte é expressão, protesto e provocação. Se Joyland incomoda a ponto de levar a frente conservadora a impedir que o filme chegue até o povo paquistanês, sua missão foi cumprida com sucesso.

Com sucesso e também com maestria. Joyland é lindamente orquestrado pela realização de Saim Sadiq, que busca nos enquadramentos encontrar olhares sugestivos das personagens que nem sempre, ou quase nunca, expressam verbalmente o que sentem, e ainda cria surpreendentes e sutís momentos cômicos que divertem com um humor oriundo quase que exclusivamente de planos muito bem pensados para nos chocar com o absurdo inserido na banalidade ordinária do dia-a-dia.

Destaque também para a banda sonora do filme. Joyland é bastante musical, e não poderia ser diferente, considerando a natureza do trabalho de Biba e Haider. Todavia, além das sempre presentes músicas que servem de coreografia para os dançarinos, Joyland traz uma muito bem-vinda sonoridade sintética que desenha a melancolia que envolve a aura triste e confusa de suas personagens. Grande trabalho sonoro de Joyland. Revelador e libertador.

Não há censura que impeça Joyland de ser o que é: uma grande e potente obra de arte, encharcada de sinceridade e revolta. Um filme maior que qualquer cultura conservadora que possa vir a tentar oprimi-lo. Joyland é, assim como suas personagens, só mais um sintoma originário de algo muito maior. Inevitável? Sim. Mas, principalmente, necessário.


Joyland
Joyland

ANO: 2022

PAÍS: Paquistão

DURAÇÃO: 2h 6min

REALIZAÇÃO: Saim Sadiq

ELENCO: Ali Junejo, Rasti Farooq, Alina Khan

+INFO: IMDb

Joyland

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