Living ou o que sobrou de Ikiru

Ikiru é um filme sensacional. A obra de Akira Kurosawa tem já mais de 70 anos e não perdeu um único momento da sua relevância e atualidade. Mas não me alongarei a falar sobre ela, pois podem saber mais do que penso aqui. Living é um remake de Ikiru. Adapta essa história a uma Inglaterra, mais concretamente Londres, do mesmo período – anos 50 – e por isso coloca-nos a pensar sobre o mesmo mas com uma diferente cultura como pano de fundo. 

A primeira coisa que me saltou à vista foi a duração de Living: 102 minutos. Isto são menos 41 minutos (!) do que a obra original japonesa. Não lhe quis dar demasiada importância, mas fiquei curioso em saber onde se pode retirar quase ¼ de uma história e manter a mesma coerência. Mais surpreendido fiquei quando percebi, ao ver o filme, que Living é em muitas situações contado de uma forma mais lenta e menos enérgica. Claro que isto se veio a refletir no impacto que a obra deixou em mim. Será que tem também a ver com o facto de ter o original tão presente, sendo eu um fã incondicional? Possivelmente. A verdade é que Living deixou-me, acima de tudo, frio. Coloca semelhantes questões, quer relativamente à sociedade e comportamentos grupais, quer em questões mais intímas, seja elas familiares ou acarca do próprio eu, motivações pessoais e impacto que individualmente deixamos no mundo. No entanto, além de já ter visto isto tudo, o filme fá-lo de um modo muito mais superficial, com muito menos convicção. 

Há mudanças nesta história. Não na sua essência nem nos principais dispositivos narrativos. São mudanças que em nada melhoram a obra e parecem apenar servir para não nos dar exatamente o mesmo. Já no que diz respeito ao que o filme replica da obra original, nunca, em qualquer que seja a área, faz melhor do que Ikiru. O que mais se aproxima – embora nem ele tenha tanto para trabalhar quanto Takashi Shimura teve – é Bill Nighy. O veterano ator inglês tem exatamente o que é preciso para desempenhar este papel de Rodney Williams, nosso protagonista principal, pois não precisa de levantar muito a voz para conquistar a sua audiência e transmitir o que tem para transmitir. Os momentos mais calmos ganham poder com ele e não é por ele que o filme não está ao nível da obra original. Mas é em tudo o resto e isso nota-se logo como a notícia da doença é transmitida à nossa personagem principal: uma forma menos enigmática, menos emocional, bem mais britânica. Esse é, aliás, um dos problemas da obra que mostra ser demasiado calculista, demasiado pensada e com pouca vontade de nos deixar sentir tanto quanto o deveria fazer. Não me interpretem mal: isto continua a ser uma fortíssima história, com boas cenas, excelentes mensagens e um ainda melhor comentário à condição humana e como vivemos em sociedade. No entanto, já vi melhor.

Nos aspetos técnicos, a recriação de Londres do passado impressiona e isso inclui um clássico guarda-roupa e a maquilhagem apropriada. A banda-sonora também está a um nível superior, com belas composições originais e uma canção antiga irlandesa que acaba por marcar o compasso da história de Rodney Williams e que nos dá alguns dos momentos que melhor resultam emocionalmente. Living é mesmo um filme competente em todas as áreas, mas não faz absolutamente nada melhor do que o original (Ikiru) lançado há 70 anos atrás. Provavelmente irá funcionar melhor para quem nunca viu a obra de Akira Kurosawa. A mim soube-me a sobras de frango reaquecidas no micro-ondas. Bom, mas já sem as melhores partes e longe do sabor daquele saidinho da brasa. 



ANO:

PAÍS:

DURAÇÃO:

REALIZAÇÃO:

ELENCO: Bill Nighy; Aimee Lou Wood; Alex Sharp; Tom Burke

+INFO: IMDb


Previous ArticleNext Article

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *