Are You There God? It’s Me, Margaret. superou minha falta de fé

Não tenho proximidade com qualquer religião, e fé é algo que penso jamais ser capaz de compreender completamente. Portanto, não costumam me agradar produções centradas em assuntos religiosos, seja por não terem nenhum apelo temático significativo a mim, ou até por defenderem ou enfatizarem costumes e crenças das quais sou contrário. Então acho que não é difícil imaginar o que veio à minha cabeça quando recebi a incumbência de criticar o filme Are You There God? It’s Me, Margaret. (Estás aí Deus? Sou eu, a Margaret.), certo?

Pois é, fui conferir o filme com uma expectativa carregada de preconceitos, pronto para revirar os olhos por quase duas horas. Mas a realidade é que por quase duas horas fui aquecido com o calor de uma obra divertida que foi capaz de me tirar boas e sinceras risadas.

Atravessando a puberdade e passando por grandes mudanças em sua vida, Margaret (Abby Ryder Fortson) se vê, assim como qualquer jovem de sua idade, confusa em meio a um turbilhão de emoções e dilemas frustrantes. Formar novas amizades, lidar com as mudanças do corpo e a ansiedade de dar os primeiros passos em direção à vida adulta são desafios empolgantes e, ao mesmo tempo, sufocantes. Mas, acima de tudo isso, Margaret tem uma grande questão a resolver: qual religião ela deve seguir?

Margaret é filha de um pai judeu e uma mãe cristã, e ambos optaram por não doutriná-la sob os costumes de nenhuma religião, deixando ao seu critério a decisão. A religião aqui é um elemento importantíssimo, pois é peça fundamental para compreendermos Margaret como personagem. A menina passa por uma fase de descobertas e questionamentos, sendo o maior deles “quem realmente sou, e quem vou vir a ser no futuro?”. A falta de direcionamento religioso simboliza perfeitamente o dilema pessoal de Margaret, que passa a ter como missão experimentar e pesquisar diferentes culturas por conta própria, no intuito de encontrar respostas ou, melhor dizendo, encontrar a si mesma.

Em suas pesquisas, a menina encontra muita beleza, mas também se depara com o lado feio da religião. Divergindo completamente do que eu esperava que o filme fizesse, Are You There, além de não funcionar como uma obra panfletária, usa de seu texto para criticar o fanatismo e a intolerância religiosa. E, apesar de, de um modo geral, o filme ser tomado de um tom leve e aconchegante, tais críticas surgem na trama com peso e importância suficientes para não só nos atingir, enquanto público, com indignação, como para abalar as estruturas de uma Margaret que chega ao ponto de questionar sua fé naquele que é seu grande confidente, a quem recorre sempre com intimidade e conforto. “Estás aí? Sou eu.”

Não esperava, sinceramente, encontrar tal abordagem por aqui. Um texto que fala de fé com tanto carinho, e que ainda assim critica a religião com sinceridade e bom senso? Não, em um filme leve voltado para o público mais jovem, não esperava mesmo!

Mas afinal, onde está a diversão a qual me referi? Bem, todo o humor e leveza de Are You There resulta das relações familiares e de amizade que Margaret mantém durante o filme. São relações críveis, longe de serem perfeitas. Algumas saudáveis, outras tóxicas, e também há as confusas e complicadas. Há muita naturalidade nas dinâmicas entre a protagonista e as pessoas que se relacionam com ela. Com a avó e os pais, por exemplo, Margaret vive algo quase utópico. Os quatro se dão tremendamente bem, e se conhecem uns aos outros como a si mesmos. Todavia, com o amadurecimento, Margaret passa a perceber que nem tudo são flores em seu meio familiar, e logo se dá conta de que há verdades amargas mesmo nas mais doces e meigas das relações.

Há também a dinâmica de Margaret com um grupo de amigas que fez após a mudança da metrópole para o subúrbio, que é o que dá o pontapé principal na trama do filme. É com as novas amigas que a menina vai dividir a curiosidade e as ansiedades de crescer e amadurecer. Vemos aqui o aflorar do interesse nos meninos, assim como o anseio pelas curvas que parecem nunca surgir e, é claro, o aguardar assustador e, ao mesmo tempo, empolgante do ciclo menstrual. Não há nada de novo aqui, apenas temáticas há muito já abordadas pelo audiovisual. As amigas de Margaret mesmo seguem alguns arquétipos já conhecidos de outros filmes coming of age. Entretanto, é em como Are You There lida com as relações da menina com suas amigas que o filme se destaca positivamente. Os laços que unem tais personagens não são tão preto no branco como costumam ser em produções semelhantes. É comum em filmes sobre dores do crescimento, que os protagonistas mantenham amizades que não necessariamente são positivas, e aqui, isso se repete. O que difere Are You There da maioria, é que tais relações não são simplesmente viradas do avesso e desconstruídas de repente, em um surto de iluminação da personagem principal. Ao invés disso, o filme respeita suas personagens e as entende como seres complexos e imperfeitos, e cria um emaranhado de situações confusas cujas resoluções não cabem em um filme tão conciso e despretensioso quanto Are You There.

A jornada de Margaret é a mesma que a de todos nós. É impossível que ao fim do filme ela chegue à reta final do que almeja no seu início. Nossa vida não é nada mais do que uma grande busca por nós mesmos e nossa razão de existir. Essa é a verdadeira jornada de Margaret, e ela ultrapassa os limites dos créditos finais do filme que protagoniza. Are You There God? It’s Me, Margaret. é apenas um pequeno e significativo fragmento do enorme, complexo e insolucionável mistério da vida.

Estou enxergando poesia demais em um bobo filme sobre crescer e se descobrir? Talvez sim. Mas é fato que Are You There me comoveu com seu inesperado posicionamento quanto a religião e fé, e a maturidade e naturalidade com que lida com as relações humanas, principalmente infantis. Fofo e humano, esse filme é do tipo que me faz cogitar encarar as coisas com um pouco mais de fé daqui para frente, para variar.


Are You There God? It's Me, Margaret.
Estás aí Deus? Sou Eu, a Margaret.

ANO: 2023

PAÍS: EUA

DURAÇÃO: 1h 46min

REALIZAÇÃO: Kelly Fremon Craig

ELENCO: Abby Ryder Fortson, Rachel McAdams, Kathy Bates, Benny Safdie

+INFO: IMDb

Are You There God? It's Me, Margaret.

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