Marte Um é o retrato das ansiedades das famílias de baixa renda brasileiras

Sonhos grandiosos aparentemente inalcançáveis, devido estigmas sociais, financeiros e ingratas expectativas nascidas do afeto e frustração; conformismo sustentado por uma cultura meritocrática e poder capital limitante; necessidade de independência e insegurança quanto à aceitação do seu amar; incapacidade de relaxar de quem sustenta o coração de um lar tomado por crescente tensão e desesperança, e só precisa se livrar, nem que por apenas um segundo, dos fardos que carrega, para assim poder descansar.

Marte Um é o retrato das ansiedades das famílias de baixa renda brasileiras. Mesmo não sendo pretos ou periféricos, como se apresentam os quatro membros da família que conduz a narrativa do filme, qualquer um que se encontre em condições sociais semelhantes há de se identificar com a obra. E não é à toa. O contexto político e social de crescente fanatismo e fascismo alavancados pela eleição de um líder nacional irresponsável e criminoso, que carrega consigo ideais de marginalização e repúdio à ordinária classe trabalhadora, torna impossível não enxergar-se ou, pelo menos, doer-se por cada um dos membros da família de incansáveis sonhadores que estrelam esse belo filme.

Deivinho (Cícero Lucas) é o caçula da família. O menino é um promissor jogador de futebol e, por isso, herdou do frustrado pai o sonho, ou responsabilidade, de se tornar um grande atleta. Mas Deivinho é um garoto sonhador, e suas ambições estão a anos luz dos gramados de um estádio de futebol. Seu objetivo é a ciência, e sua missão é participar de um ousado projeto de colonização espacial denominado “Marte Um”. Mas para realizar isso, além de conflitar e decepcionar o próprio pai, Deivinho tem um enorme abismo de problemas financeiros e sociais para superar. Algo tão desanimador e inevitável, que faz de seu objetivo algo tão distante de sua realidade quanto o Planeta Vermelho.

O pai, Wellington (Carlos Francisco), é um homem que, apesar de sonhar com o sucesso da carreira de atleta do filho, está conformado com sua posição de “inferioridade social”. Talvez por lutar contra um destrutivo vício, o homem se sinta fraco e ordinário em relação aos demais. Talvez, por ter vivido uma vida inteira como proletário, já tenha ouvido de seus “superiores” qual o seu lugar na hierarquia social vezes demais para sequer pensar em questionar isso. Talvez, tudo isso seja o motor para seu conservadorismo e comportamento, que busca o bem para sua família, mas, por vezes, resulta na opressão e toxicidade.

Eunice, a filha mais velha, é determinada e inconformada. A garota almeja bater asas para longe do teto de seus pais, mas a liberdade que procura vai muito além da tão desejada independência. Eunice é lésbica e, com o encontro de uma grande paixão, enfrenta não só a inevitável opressão vinda da sociedade, mas a ansiedade de abrir-se com seus pais e confrontar a provável decepção derivada do conservadorismo que, por vezes, pode superar o amor parental. 

E por fim, mas não menos importante, temos Tercia (Rejane Faria), a mãe da família. O coração da casa, responsável por manter todos unidos e botá-los no lugar certo, quando necessário, Tercia sofre com o peso dos males que absorve daqueles que ama para aliviar suas tensões e confortá-los. Seu limite de estresse é testado quando passa por um trauma angustiante e, ainda por cima, não é levada a sério quando compartilha suas angústias com aqueles a quem dá suporte. Tercia está tão exausta e emocionalmente abalada, que o simples ato de descansar se torna um desafio enorme.

Todos os quatro, indivíduos singulares, compostos por diferentes qualidades, e movidos por diferentes sonhos e objetivos de vida. Unidos por sangue, por afeto, e pela inesgotável esperança de viver uma vida mais confortável e digna. Esperança essa que se vê abalada pelo cenário de crescente idealismo fascista que infesta a todo o país. O mal bolsonarista não se apresenta de forma direta na vida da família, mas sim de forma indireta. A grande força de Bolsonaro sempre foi seus discursos fáceis de gratuitas ofensas e extremismo violento, que validam ideais e comportamentos desprezíveis. Discursos de ódio e menosprezo aos ordinários e desfavoráveis cidadãos da classe trabalhadora e demais minorias.

Bolsonaro e seus seguidores menosprezam gente como Deivinho, Wellington, Eunice e Tercia. Bolsonaro e seus seguidores impregnam todo um país com sua estupidez negacionista. Logo, a nação mãe desses quatro se torna um lar ingrato, que odeia tudo o que eles são, e despreza tudo o que eles podem vir a ser.

Mas, ainda assim, em meio a tantos motivos para baixar a cabeça e se conformar com a miséria, Marte Um insiste em demonstrar esperança onde a mesma parece estar morrendo. O filme nos diz que, mesmo nos momentos de maior escuridão, podemos sempre encontrar, se muito nos esforçarmos para isso, um feixe de iluminação e dignidade. Marte Um diz que é possível acreditar em um futuro melhor, e eu, pessoalmente, gosto de acreditar nisso.


Marte Um
Marte Um

ANO: 2021

PAÍS: Brasil

DURAÇÃO: 1h 55min

REALIZAÇÃO: Gabriel Martins

ELENCO: Cícero Lucas, Carlos Francisco, Camilla Damião, Rejane Faria

+INFO: IMDb

Marte Um

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