Mais três críticas do MOTELX, hoje com um forte destaque para críticas sociais e também para propósitos de vida. Embora em diferente escala, mais três recomendações!
Propriedade
Realização Daniel Bandeira
Elenco Mallu Gali, Zuleica Ferreira, Tavinho Teixeira
País: Brasil
Nesta história, Teresa (Mallu Gali) ainda vive atormentada com um episódio de sequestro, quando se vê confrontada com uma nova situação de vida ou de morte, vendo-se cercada por um grupo de pessoas revoltadas que querem mais das suas vidas e não olharão a meios para atingir os seus fins. A Teresa resta o interior do seu novo automóvel blindado.
O Brasil tem estado muito forte em filmes recheados de comentário social, nomeadamente ao abordar a divisão entre pobres e ricos. No entanto, recentemente isso tem sido acompanhado por um certa postura doutrinária na abordagem das temáticas. Era isso que esperava de Propriedade e Daniel Bandeira surpreendeu-me ao fazer precisamente o oposto: nunca toma qualquer lado, apresenta uma hipotética realidade que parece cada vez menos fictícia e deixa os conceitos de “bons da fita” e “vilões”, de pessoas 100% certas e 100% erradas para Hollywood.
É fácil interpretar esta obra mal. A sua abordagem relembra-me muito o que Michel Franco fez com Nuevo Orden (2020), que muito teimam em apelidar de fascista. Espero me enganar, mas assim que a obra de Bandeira chegue a uma maior audiência, vários sujeitos – desejosos dos seus cinco minutos de fama e pejados de um falso sentimento de superioridade moral – irão apelidá-la de forma semelhante. O que não faz sentido, pois o autor desta obra nem sequer esconde o que pensa de Bolsonaros e afins. Ele sabe que essas figuras permitiram chegarmos onde chegamos, mas a Bandeira interessa retratar a realidade. E na realidade, no momento, os conceitos de anjos e demónios desaparecem. Qualquer pessoa poderá tomar ações horríveis se os botões “certos” forem pressionados. Qualquer pessoa em situações de pânico, de tudo é capaz.
O filme é bastante violento e o ritmo é brutalmente imparável. Tem um incrível trabalho de câmara que explora muito bem sensações de impotência e claustrofobia, um excelente som a tornar a atmosfera ainda mais pesada e uma perfeita atuação de Mallu Gali no papel principal.
Lovely, Dark, and Deep
Realização Teresa Sutherland
Elenco Georgina Campbell, Nick Blood, Wai Ching Ho
País: EUA
Este é um filme que joga com as teorias da conspiração sobre o número ridículo de pessoas que desaparecem todos os anos, sem deixar rasto, de reservas naturais e outras ocorrências bizarras. Na história, Lennon (Georgina Campbell), tem a oportunidade de ocupar o cobiçado cargo de guarda-florestal num posto completamente isolado e rapidamente estranhos fenómenos obrigam-na revisitar um passado que nunca conseguiu esquecer.
De imediato, saltam à vista as lindas paisagens florestais portuguesas, pois foi por cá que isto foi filmado e o filme utiliza muito bem a imensidão dos espaços para nos passar a sensação de isolamento pretendida. Todo o primeiro ato é excelente, criando uma boa atmosfera de suspense e mistério. Simultaneamente, vai-nos apresentando as suas personagens, com o principal destaque a ir para o que Georgina Campbell consegue fazer no papel de Lennon, demonstrando ter capacidade para carregar um filme inteiro nas costas, sendo muito fácil acreditar naquilo que vimos em cena. É ela que carrega as temáticas do filme, que vão andar muito à volta da família, mas também da busca por um propósito e de, acima de tudo, respostas que expliquem acontecimentos passados. A sua performance é em crescendo, terminando com uma cena final subtil e impactante.
Os problemas maiores do filme dão-se quando passa demasiado tempo no mundo “não-real”. Aí torna-se um pouco repetitivo e a atmosfera criada não se consegue traduzir numa experiência tão intensa como prometeu. O final é bom, mas ficam perguntas no ar que dificilmente terão alguma resposta convincente (e nem sequer falo sobre os “causadores” dos desaparecimentos). Os elevados valores de produção – excelente cinematografia e um muito bom som que faz aumentar a tensão – fazem desta uma obra sempre fácil de acompanhar, deixando-nos, ainda assim, a desejar por mais, tendo em conta o seu potencial.
Raging Grace
Realização Paris Zarcilla
Elenco Max Eigenmann, Jaeden Paige Boadilla, Leanne Best
País: Reino Unido
Raging Grace é um thriller muito bem conseguido desde o seu primeiro minuto. Nele é-nos mostrada a história de Joy, uma imigrante filipina ilegal no Reino Unido, que tudo faz para conseguir sobreviver, enquanto procura legalizar a sua situação. No entanto, no dia em que decide aceitar uma proposta tentadora para trabalhar na casa de uma família rica, as coisas começam a ficar um pouco estranhas demais…
É fácil perceber pela premissa que este é um filme com uma grande componente de comentário social. A forma como Joy é tratada por todos aqueles à sua volta varia, mas existe sempre uma certa condescendência habitual no tratamento entre pessoas de classes sociais diferentes, onde fica exposto que um lado tem mais força do que o outro. Ainda assim, o filme procura não tornar a sua atmosfera demasiado pesada e para isso muito contribue a filha de Joy, Grace, que está sempre pronta para as mais terríveis diabruras. Isto permite que a obra respire, alivie algum peso dos temas que retrata, provocando mesmo momentos muito divertidos. No geral, o comentário social é bastante bem conseguido, embora exista um pequeno discurso que nos tenha soado um bocadinho forçada e desnecessário. Ainda assim, destaque muito positivo para inserção de vários elementos da cultura de origem de Grace, alguns com peso relevante para a história. Destaque também para a excelente dinâmica entre mãe e filha, muito bem representadas por Max Eigenmann e Jaeden Paige Boadilla.
Tecnicamente, há imaginativos ângulos, um trabalho de edição brilhante e alguns efeitos sonoros sublimes que ajudam a a tornar o ambiente de cortar à faca quando é caso para isso. O filme toma alguns caminho inesperados e surpreende pela sua audácia, ainda que não tenha conseguido fechar todas as suas portas com eficácia máxima. De qualquer forma, esta é uma proposta muito recomendável tanto para quem se quer apenas divertir com um inteligente thriller, como para quem quer ficar horas a pensar sobre os temas retratados. Uma entusiasmante estreia na realização de Paris Zarcilla.