Um documentário, diferente do que muitos pensam, não tem como objetivo apresentar uma verdade absoluta sobre algum tema. A arte de produzir um filme documental vai muito além disso. Há uma intenção específica ao escolher o que contar e a partir de que ponto de vista contar. Além de que, um documentarista não só pode se dar a liberdade de contar sua própria versão de uma verdade, como pode usar da ficção para discutir uma realidade, ou até mesmo usar da realidade para construir uma ficção.
Navalny é o tipo de documentário que se concentra em um específico ponto de vista – posicionamento político, neste caso – e decide defendê-lo a todo custo. Daniel Roher acompanha a luta do russo Alexey Navalny, forte opositor do governo de Vladimir Putin, para se recuperar de um atentado à sua vida e encontrar respostas sobre o caso.
Pois, já posso adiantar, o filme é muito competente com sua proposta. Não só tomamos facilmente partido da luta de Navalny como geramos enorme empatia pela sua figura. Isso se deve, obviamente, ao próprio Alexey Navalny, que é uma pessoa extremamente carismática. Mas a realização de Roher também implica fortemente nisso, uma vez que ele decide fazer de boa parte de seu filme uma extensa propaganda eleitoral.
Porém, por mais que afirme que a proposta seja cumprida com êxito, tenho dificuldade em acreditar que esse caráter de publicidade eleitoral que toma conta de boa parte do documentário tenha sido a melhor escolha para o filme. Em diversos momentos, somos apresentados a cenas de dramaticidade forçada, com direito a banda sonora piegas e tudo mais, que insistem em trazer um ar exagerado para o documentário. Tal escolha narrativa faz balançar o envolvimento criado entre o espectador e o filme, confundindo as sensações de quem está a consumir uma história seca de uma realidade cruel, com um desnecessário tom meloso. Daniel tenta tanto nos convencer de que Alexey Navalny é digno de nossa simpatia, que se torna inevitável questionar se o que está a nos dizer é realmente confiável.
E esse questionamento só se aprofunda com as declarações de Navalny sobre o apoio de grupos neonazistas à sua luta. Navalny defende que em um estado justo, todos devem ser ouvidos, mesmo os que propagam ideias absurdas e criminosas. Considerando isso, é difícil não pensar na possibilidade de que, por trás da imagem de herói justo e cativante, se esconda apenas mais um líder fascista.
Mas, é claro, ter do outro lado da balança um terrível governo autoritário e desumano, faz da decisão de comprar a briga de Navalny muito mais fácil. Não é preciso muito para antagonizar o governo de Putin. Temos na Rússia um prato cheio: censura; abuso de poder; violência policial; manipulação da verdade. E, é claro, como não pode faltar em nenhum regime autoritário, a enorme soberba de um governo que acredita ser ditador de toda a verdade e que não se importa em deixar claros rastros de seus crimes hediondos.
E são essa soberba e falta de escrúpulos que garantem os melhores momentos desse filme, que salta de um bom documentário para uma ótima trama de investigação criminal. O que vemos em tela é tão surreal que nos faria duvidar de sua veracidade mesmo em um filme ficcional de espionagem. Toda a investigação é extremamente tensa e engajante e, ao mesmo tempo, absurda e revoltante. O tom mais contido e sóbrio escolhido para esses momentos de tensão são extremamente convenientes, o que reforça a ideia de que talvez o filme tivesse mais a ganhar se a realização optasse por fazer uso dessa abordagem criativa durante toda a sua rodagem.
Mas no fim, apesar de algumas inconsistências, Navalny consegue cativar, gerar empatia, empolgar e revoltar, em um mesmo nível. Sua história absurda envolvendo grandes conspirações dignas dos maiores filmes de espionagem envolve fácil, e a sua oposição a um governo estúpido e violento facilita o engajamento, apesar da moral dúbia, porém sedutora, do homem que serve de motor a trama e dá título ao filme.