Nos vários discursos de aceitação aos muitos prémios vencidos no ano passado pelo seu Pinóquio, Guillermo del Toro não se cansou de dizer e repetir que a “animação não é um género” e que a “animação não é apenas para crianças”. É importante que interiorizemos isso o mais rapidamente possível para podermos absorver e acolher tudo o que a animação tem de bom para nos trazer.
Nayola é um filme muito adulto. Não que com isso perca a sua jovialidade e rebeldia. Jovens adolescentes, por exemplo, também terão motivos para delirar com a animação e com algumas das fortes mensagens presentes no filme. No entanto, para se absorver tudo o que este filme tem para dizer é importante que se olhe para ele de uma forma adulta. Ao focar-se em três perspectivas, o filme foca-se também ele em três guerras em Angola. A primeira – a que é menos explorada – é a da avó, Lelena, que viveu e muito perdeu nos tempos da guerra pela independendência do país. A segunda – e a mais explorada – é a da sua filha, Nayola, que por tudo passou à procura de reencontrar o seu amor durante a guerra cívil que assolou o país durante quase três décadas. Por fim, Yara, filha de Nayola, vive a sua própria guerra num tempo mais contemporâneo (não é exatamente hoje, mas pouco mudou desde então). As armas oficialmente calaram-se, mas…”ninguém volta da guerra”. Muito menos um inteiro povo. O povo continua a viver a sua guerra pela sobrevivência, seja para tentar ter um pouco para colocar na mesa, seja para ter condições mínimas de habitabiliade ou apenas e só porque se quer poder expressar livremente.
Devo realçar aqui que a minha conexão com Angola é grande. Talvez também por isso, o filme agarrou-me imediatamente desde os primeiros segundos. O presente de Yara em Luanda fez-me recordar muita coisa, fez-me voltar a ver cores que estavam adormecidas na minha memória, fez-me voltar a sentir cheiros e, acima de tudo, a sentir o sofrimento de um povo. Ainda assim – e apesar de não os ter vivido – são os tempos da guerra cívil vistos sob a perspetiva de Nayola que mais tempo de antena têm e também o que mais impressiona. O meio escolhido – a animação – não retira em nada o impacto da guerra, o impacto no rosto daquelas pessoas, deixando evidente feridas que nunca sararão. A técnica escolhida para o passado passa pela animação 2D e a escolha é perfeita. Cores vívidas, personagens com feições características, cenários de guerra incríveis e desoladores e uma espécie de realismo mágico que é muito bem transportado daquilo que imaginamos quando lemos um livro de José Eduardo Agualusa ou Mia Couto. Sim, porque isto também é deles. Esta obra de José Miguel Ribeiro é baseada numa peça teatral, “A Caixa Preta”, escrita por esses dois monstros da literatura. E como se nota a sua experiência e qualidade. Cada linha de diálogo parece escrita para nos tocar na alma, com propósito, como uma flecha apontada ao nosso coração. A entrega das falas também não fica nada a desejar, com vozes distintas e bem trabalhadas deixando-nos sentir tudo o que há para sentir. No presente, a animação muda para 3D e tão bem isso se ajusta a esta moderna Luanda em ebulição, mas tão presa ao seu passado conturbado. O caos na ruas do bairro, os candongueiros, o medo que a população sente de quem os deveria proteger…tudo está aqui e o filme não se desvia de nenhumas balas.
A forma como o argumento, de Virgílio Almeida, é construído é bastante inteligente. Nayola nunca chega a cansar e a forma como o filme interlaça diferentes espaços temporais e diferentes personagens tendo como pano de fundo os mesmos temas é fascinante e suga-nos por completo. Não há momentos mortos, não há nada desnecessário. Há sempre algo que faz a ação andar, tudo é feito com um propósito, seja quando o filme tem os pés bem assentes na terra, seja quando o filme explora alguns dos seus aspetos mais fantásticos perto do seu final. A música é outro dos grandes destaques. Há várias canções reconhecíveis para quem é conhecedor da música angolana, mas é a Mona Ki Ngi Xiça do lendário Bonga que marca o filme, seja pelo que nos diz, seja pelo seu significado combativo, seja pelo tom melodioso, nostálgico e melancólico que imprime. Os seus acordes ouvem-se antes no filme mas é quando se ouve a voz de Bonga já perto do final que nos bate forte no coração.
Muita coisa mais haveria para dizer sobre Nayola mas não quero estragar surpresas. Na verdade, adoraria que isto fosse visto pelo maior número de pessoas possível. Há pouco descobri que o realizador de Nayola não tinha um grande conhecimento ou ligação com Angola antes de começar a trabalhar nesta obra. Esta produção demorou nove anos e eu diria que não se nota nem um bocadinho essa falta de conhecimento prévio. Este é um filme que se sente angolano, muito mais angolano do que português, onde as vozes de todo um povo pertencem às vozes daquelas três mulheres. No ecrã irão ver tantos elementos identificativos de um povo – sejam os tecidos, a fauna, a flora, as línguas locais ou a forma como as suas gentes se comportam, vivem e falam – que se nota muito bem o carinho e o respeito com que este material foi tratado.
Não sou o maior fã de declarações absolutistas, mas tenho poucas dúvidas de que este é um dos melhores filmes de animação jamais feitos em língua portuguesa. A animação é magnífica, o diálogo é marcante e incisivo, tem um bom ritmo, tem mistério e uma Angolanidade contagiante. Corram para as salas de cinema porque isto merece mesmo ser visto e nós temos que mostrar que queremos mais obras do género.