Night in Paradise é crú, violento, belo e poético

Um conselho: se acham que filmes de gangsters, de famílias de poder e máfia são todos iguais, não estão no sítio certo. Atentem em The Irishman e Goodfellas, duas abordagens bem diferentes pelo mesmo realizador (Martin Scorcese) a um tema que, na superfície, é semelhante. Se quiserem alargar o leque a abordagens mais fora do comum, o cinema asiático (e o japonês, em particular, ainda é rei no género) têm inúmeras boas propostas que abordam a problemática sob as mais variadas perspetivas.

Achei esta introdução necessária para que o leitor – menos acostumado com a temática em causa – pudesse perceber um pouco da profundidade e complexidade presente em algumas destas obras. O sul-coreano Night in Paradise é um desses casos. O plot não é nada de extraordinário e não podemos dizer que não tenha sido já visto antes: de forma a vingar uma tragédia pessoal, um gangster (Tae-Gu), que não faz parte das hierarquias mais altas do seu grupo (mas ambiciona lá chegar), resolve assassinar uma das mais importantes peças do tabuleiro, pertencente a um gang rival. Agora, Tae-Gu precisa de se refugiar numa ilha, enquanto aguarda por transporte para uma localização remota, onde desaparecerá do radar e não mais será encontrado. Nessa ilha, Tae encontra-se com uma jovem à espera da morte – Jae-Yeon – que não consegue esconder a revolta que tem para com o mundo e, principalmente, para com pessoas como Tae, que ganham a sua vida, destruindo vidas, não só de outros como ele, mas também as de muitas famílias que culpa nenhuma têm nestas guerras de poder.

É esta relação entre Tae e Jae que se torna o ponto central da trama, carregando o filme para patamares inesperados a nível emocional, ao vermos uma amizade e pontos em comum a crescer entre personagens tão díspares na sua essência e na maneira de verem o mundo, fazendo ambos (e nós próprios!) acreditar num futuro melhor. As duas interpretação são excelentes, fazendo-nos rir, chorar e sofrer com eles e uma palavra também é devida ao excelente trabalho do elenco secundário, recheado de estrelas do cinema sul-coreano.

Park Hoon-jung escreve e realiza e, aos seus 46 anos, não se pode dizer que o mesmo seja um estreante no género. The New World, talvez seja o seu filme mais conhecido, e com razão, por ser uma das mais espetaculares obras de gangsters dos últimos anos. Mas o seu currículo não fica por aí: obras como V.I.P., The Witch: Part 1 e The Tiger abordam temáticas e género diferentes e todas são muito recomendáveis. Aqui, a cinematografia – que já era um dos fortes dos seus filmes anteriores – é a mais bela de qualquer das suas obras. A Ilha de Jeju ajuda, com cenários deslumbrantes e pouco alterados pelo homem, e a utilização dada à iluminação e às cores faz, muitas vezes, parecer que estamos numa realidade alternativa – boa demais para que assim continue! A realização é bastante segura, com várias cenas de acção coreografadas que entusiasmarão qualquer fã do género, mas é na utilização dos silêncios, olhares e sentimentos que Hoon-jung dá aqui um passo importante na sua maturidade como realizador. Ao ver certas cenas, é impossível não me lembrar de certas obras do japonês Takeshi Kitano (até pela temática da ilha como refúgio) ou do chinês Johnnie To (quando, por exemplo, os grupos rivais negoceiam à mesa) e aperceber-me de algumas das influências presentes neste filme. E digo isto como um elogio, pois este filme não fica nada atrás de alguns dos clássicos dos referidos autores.

Não é a obra mais fácil de Hoon-jung e é, provavelmente, o mais controverso dos seus trabalhos, podendo ser muito violento para um público que espera algo cerebral e muito introspectivo para um público que espera mais acção. Por isso, o realizador deve ter consciência que este não será o seu filme mais consensual a nível de críticas. No entanto, é, para já, o meu favorito de toda a sua carreira. A forma não-apressada como conduz a história, introduzindo elementos dramáticos e de quase-romance a uma temática tão pesada, permite um exemplar crescimento das suas personagens principais. Ainda assim, mesmo com essa carga sentimental, o realizador nunca se esconde de nos mostrar os maiores horrores desse tipo de vida e fá-lo de uma forma crua e violenta.

O último acto é para quem tem um estômago forte e as cenas finais – onde Yeo-bin Jeon eleva a sua atuação para patamares de imortalidade – deixam-nos com um sentimento agridoce (como só poderia ser), por termos assisitido a algo verdadeiramente grandioso, mas que termina ali. Night in Paradise é uma daquelas obras que eu não queria que tivesse terminado. É um daqueles filmes que irei rever, voltar a emocionar-me, voltar a revoltar-me e voltar a chocar-me. Irá voltar a ser doloroso, mas irá voltar a valer a pena.


Night in Paradise
Noite no Paraíso

ANO: 2021

PAÍS: Coreia do Sul

DURAÇÃO: 131 minutos

REALIZAÇÃO: Park Hoon-jung

ELENCO: Tae-goo Eom, Yeo-bin Jeon, Seung-Won Cha

+INFO: IMDb

Night in Paradise

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