O que determinamos como normal é o que se observa praticado pela ampla maioria de nós.
Para encarar o anormal, não basta reconhecê-lo. Não basta aliená-lo do todo. É fundamental entender o anormal. Isso implica ter em conta o impacte do anormal na norma, como o anormal se desenvolveu, qual a resposta da norma ao crescimento do anormal e, do mais importante: como começou. Nitram é o Génesis artístico de Martin John Bryant.
Caleb Landry Jones é de facto, inequivocamente e sem qualquer sombra de dúvida Martin John Bryant. Ambos são o mesmo e nada que ninguém nunca me diga, me demoverá de jamais pensar o contrário.
Eu sei que Bryant está condenado a 35 prisões perpétuas sem possibilidade de liberdade condicional, mas eu vi Nitram e vi lá o Bryant. Ele esteve lá a mostrar-me quem era, como funcionava, como funcionavam com ele e como ele no fim colocou 35 pessoas sem funcionar permanentemente e outras 23 pessoas com funcionamento parcial.
Eu sei que Caleb Landry Jones é um actor que participou numa outra mão cheia de coisas, mas eu vi Nitram e ele estava lá, na Austrália a tentar cortar relvas para uns trocos, a tentar surfar para se incluir, a tentar lidar com a sua natureza pouco natural e de como o cocktail de lodo, frustração e choque emocional o fizeram ter uma prestação tão incrível que este parágrafo está a falar do actor e do personagem que foi mesmo um tipo a quem faltaram coisas e foram dadas outras a mais, sob uma salada de fruta que dificulta discernir o que se escreve da pessoa que faz da pessoa, da pessoa feita de quem a representou e de como no fim saiu tudo de forma assustadoramente fluída.
Judy Davis é outra fenomenal. A cara dela sozinha conta toda uma história e sem a necessidade de uma única expressão que infira alguma emoção requerida pela cena ou guião ou escolhida por si para cumprir com o que quisesse ou não. Estava como um pato no lago. Aproveitou demais o tempo que lhe fora conferido como preponderante mãe e disciplinadora de Nitram a contraste de Anthony LaPaglia como pai permissivo, terno e de espinha mais fraca para com o seu filho e a vida em geral.
Essie Davis cumpre muito bem com o seu papel de outra agente da disfunção. A não-química altamente cúmplice entre Essie e Caleb é testemunhal da experiência de uma e da ambição de outro. Pecou por escassa pela muito ténue exploração, com preocupação em mostrar o desnecessário.
A representação foi o ponto alto deste filme. Os acontecimentos passaram francamente rápido, mas o tom foi de slow-burner, que deu por mim naquele lugar estranho que muitas vezes me encontro quando oiço um álbum de Dream Theater ou Devin Townsend: parece que vivi uma vida inteira de viagem artística, mas só se passaram 7 minutos daquela música (porque quero e gosto), neste caso dei por mim exausto na marca da 1 hora e 36 minutos de filme da sua total hora e 52 minutos.
Isto só me remete a que muita palha me fora alimentada, pese embora o respeito que entendi que Justin Kurzel desta vez teve por mim (que não teve em Assassin’s Creed no seu todo) em ser pouco expositivo no diálogo e confiou em mim como espectador que fizesse sentido do que decidiu mostrar-me.
Acho é que me mostrou muito, que não acrescentou nem subtraiu para que eu tirasse as minhas conclusões sobre Martin John Bryant.
Isto foi bem filmado e há ali dois ou três planos que me deixaram confusamente surpreendido pelo talento que o senhor mostrou ter. A banda-sonora é ferramenta que pontifica transições de actos. Nada contra isto. Toda a filmografia remeteu a raw-shot na sua maioria, com recurso a muita shaky-cam e planos fixos, que traduziu num tom mais retratista que romântico ou artístico, o que entendo de bom grado.
Agora o que não entendi foi a mensagem que o realizador quis passar ao fazer uma menção destacada à saúde mental como créditos iniciais e no final outra menção sobre armas de fogo na Austrália, quando o filme propriamente dito tratava-se de Martin John Bryant e de como ele isoladamente na sua disfunção, na sua anomalia foi interpretado pelo mundo e de como esse mundo, entretanto, lá tem outros problemas como por exemplo o das armas de fogo.
Num próximo filme que Kurzel seja mais definido, terá mais classificação. Não foi desta, mas foi uma excelente tentativa.