No Bears (Ursos Não Há) é mais do que um filme. É um ato de rebeldia. Ou melhor, de resistência. É o clamor desesperado e exausto por justiça em nome do assassinato da arte.
Jafar Panahi escreve, produz, realiza e protagoniza clandestinamente esse filme que conta a história de Jafar Panahi, que escreve, produz e realiza um filme clandestinamente. No Bears é ingrata e dolorosamente metalinguístico. Uma obra concebida às escondidas por um artista proibido pelos líderes de sua nação de produzir sua arte, considerada ofensiva e nociva à segurança de seu país, o Irã. A partir de 2010, quando preso pela primeira vez, Jafar foi punido com a sentença de 20 anos sem poder produzir obras audiovisuais, ou viajar para o exterior. Desde então, o realizador vem produzindo seus filmes às sombras do governo, e contrabandeando-os para o resto do mundo.
No Bears surge como um fragmento da vida de Panahi e sua luta contra a opressão, pincelado com uma aquarela de ficção dissolvida em sangue.
Ausência de banda sonora. Realização e fotografia sóbrias e naturalistas, que capturam a ação quase sem interferir no campo cenográfico. Edição quase imperceptível devido aos grandes e prevalecentes planos pacientes, desprovidos de qualquer pressa. No Bears não precisa de demais ornamentos para dizer o que quer dizer: basta pôr a câmera para rodar e adicionar uma pitada de ficção para movimentar a trama e encorpar sua mensagem com outras revoltantes analogias.
Panahi luta para produzir seu filme. Realiza escondido, à distância. Em seu abrigo, um vilarejo humilde, tradicional e conservador, o realizador interfere na paz dos habitantes com sua progressista presença e arte. Panahi é minoria em um ambiente nacional de obscuridade e opressão dominantes. Sua vocação vai e sempre irá chocar-se violentamente com a estupidez e conservadorismo sedento de sangue daqueles que se dizem donos de toda verdade e moral.
No Bears é desprovido de qualquer apelo comercial. Não vá até o filme na expectativa de entreter-se. Tal ato é tão injusto quanto ofensivo à obra, pois No Bears é tudo o que quer e precisa ser. É arte em sua maior pureza. Agradar é a última coisa que Jafar Panahi busca com seu filme. Sua pretensão é apenas de atingir seu público com sua muito violentada e censurada voz. O impacto precisa ser sentido, seja ele absorvido da forma que for.
Após a estreia do filme em 2022, Jafar Panahi foi preso pela segunda vez, sendo apenas solto no início de 2023, após dar início à uma greve de fome. Sua luta contra a injustiça será eterna, assim como a opressão que o cerca e, aparentemente, sua paixão pela arte do cinema e o poder do audiovisual em movimentar o mundo contra a escuridão. Panahi é bravo, e merece que consumamos sua arte e mantenhamos sua voz sempre firme e ativa. É o mínimo que podemos fazer em nome de sua corajosa afronta, e do cinema enquanto meio de expressar as verdades que existem em nós, interna, externa, individual ou coletivamente.