Sutileza e complexidade em Passing

Somos seres complexos. Há muito mais em nós do que demonstramos externamente, somos formados por particularidades únicas que nos fazem muito mais do que qualquer rótulo tão facilmente empregado a nós. A tarefa de decifrar uma pessoa não é fácil, seus anseios e suas reais intenções geralmente são ocultados por máscaras tão confortáveis e tão bem estruturadas pela sociedade, que nem mesmo quem as usa tem noção disso. Talvez seja esse o catalisador que nos instiga a manter relações sociais: o tesão de tentar solucionar o misterioso e fascinante enigma da mente humana. Mas, levando em conta a tal complexidade já citada, o que nos motiva pode também, ao mesmo tempo, nos amedrontar. Afinal, o que apavora mais o ser humano do que o desconhecido?

Passing (Identidade) entende bem isso e apresenta uma obra madura e sutil sobre as conturbadas e instigantes relações humanas.

Duas amigas se reencontram após anos sem contato: Irene (Tessa Thompson), bem casada e mãe de dois filhos, atenta às lutas raciais e segura de sua negritude, e Clare (Ruth Nega), que vive uma vida de mentiras, se passando por branca em um relacionamento com um homem racista. Passing fala sobre o conflito de duas realidades distintas e as consequências internas e externas causadas por esse complicado relacionamento, assim como a dificuldade de viver em uma sociedade que te odeia pela cor que carrega em sua pele e a complexidade de ter de lidar com essa situação. 

Com sutileza, o texto de Passing nos carrega por uma narrativa de olhares, intenções e desejos ocultos, apostando sempre na sugestão, sem trazer respostas óbvias. É belo como a realização usa de sua fotografia precisa para implantar em seu público dúvidas a todo momento, como na cena em que Clare visita a casa de Irene pela primeira vez: ao descer as escadas, Irene vê através de um espelho seu marido se aproximando de forma intimista de sua amiga, o que, apesar de se mostrar falso em seguida, tendo em vista a  impressão de proximidade criada pelo ângulo distorcido reflexo, serve de gatilho para a desconfiança de infidelidade. Outro exemplo é a forma com que representam o olhar de Irene sobre Clare: há sempre um tom de admiração divina, intocável, proibida. É difícil não enxergar aqui uma atração sexual reprimida. 

Os diálogos da obra são outro ponto forte. Um excelente exemplo disso é a conversa de Irene com Hugh (Bill Camp) sobre Clare e os motivos por trás do interesse de pessoas brancas nos eventos sociais negros. Há muito sobre Irene sendo dito nesse momento: ela se mostra muito segura em relação ao comportamento de terceiros, julgando-os facilmente, sempre afirmando com muita certeza suas opiniões. Tal postura se mostra conflitante com a forma que enxerga a si mesma, já que Irene parece estar sempre confusa, em constante desequilíbrio interno. Naturalmente, essa insegurança se intensifica na presença de Clare, que a sufoca com sua intensidade e a provoca com sua malícia.

Nada é explícito em Passing, a não ser o racismo, que é abordado de forma direta e violenta, como deveria ser. E, a partir desse tópico, é possível perceber mais sinais da insegurança de Irene. Apesar de ativa nas discussões da causa negra, ela se mostra relutante em relação ao contato de seus filhos com a realidade do mundo em que vivem, tentando protegê-los da violência e preconceito em um casulo de omissão e desinformação. É riquíssimo como o longa consegue trazer diversas camadas à uma personagem tão complexa que é capaz de ir contra seus princípios mais triviais para defender quem ama.

Passing é sutil, belo e complexo. Com seu maior foco nas relações íntimas de suas personagens com os demais e consigo mesmos, abusando do não verbalismo e da sugestão, traz uma conclusão que pode não satisfazer o público que procura em um filme desfechos esclarecedores, mas sim a quem se interessa por uma narrativa provocadora e reflexiva. 


Passing
Identidade

ANO: 2021

PAÍS: EUA

DURAÇÃO: 1h 38min

REALIZAÇÃO: Rebecca Hall

ELENCO: Tessa Thompson, Ruth Negga, André Holland

+INFO: IMDb

Passing

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