Spielberg nunca foi nada mau com as primeiras cenas dos seus filmes, mas a cena de introdução de Salteadores da Arca Perdida está seguramente entre as melhores da história do cinema.
Digo isso não apenas pela ação frenética e pela excitação que nos desperta. Claro que isso é fantástico e faz-nos de imediato desejar mais. Digo essencialmente por tudo o que ele nos consegue dizer numa cena tão curta e contida. Nela conseguimos identificar os principais traços de Indiana Jones: aventureiro, imaginativo, sempre capaz de encontrar uma solução, com um coração puro. Nela ficamos também logo a saber da importância do chicote, do humor da nossa personagem, bem como da sua aversão a cobras. Nela somos também apresentados a um dos principais vilões e logo a ele associamos traços que nos fazem desejar que o seu fim não seja muito positivo. Quando a cena inicial conclui nós sentimos que já conhecemos Indiana Jones e não pode haver um maior cartão de visita para uma personagem do qual nada sabíamos previamente.
Um dos aspetos mais impressionantes deste filme é que todas as cenas – repito, TODAS – podem fazer parte de um compêndio das melhores cenas do cinema. Tudo aqui é marcante. A primeira aula de Indy; a nossa introdução a Marion e consequente luta no bar; Indy no Cairo onde conhecemos o grande Salah e temos uma magnífica setpiece nas ruas culminando com a tensão de uma possível morte e um envenenamento; toda a enorme sequência no deserto – seja a descoberta do local; as cobras; o perigo de morte; a luta no avião; a perseguição final na estrada; o clímax com a abertura da arca com um desfecho incrivelmente pesado para um filme com uma classificação etária tão baixa.
Não há um momento para respirar, não há momentos mortos e, com tudo isso, Steven Spielberg ainda nos consegue trazer, de forma bastante convincente, amizades, traições, cenas super engraçadas, romance e um desenvolvimento de personagens sem qualquer paralelo em histórias do género. A acompanhar tudo isto, um dos mais fiéis escudeiros deste Spielberg aventureiro, o senhor John Williams com uma das bandas-sonoras mais impressionantes da sua carreira. Já o seria se se limitasse ao mítico tema principal, mas ele não se fica por aí, tendo sempre o tema e o tom certo para o momento mais apropriado, vibrando em ritmos acelerados quando a ação cresce e optando por tons mais sinistros nos momentos de maior terror e suspense.
Impossível é falar de Indy sem referir o grande Harrison Ford. Ele sempre gostou de ver o seu nome mais associado a isto do que a Star Wars – e, sim, Indy também tem o dedo de George Lucas, que teve na origem da personagem e depois convenceu Spielberg a tomar o leme da realização. Ford aqui sente-se como peixe na água, com uma personagem que é irónica, mas também inteligente, uma personagem a quem muitas coisas de errado acontecem, mas que tem sempre uma resposta, tem sempre uma solução. Carismático desde o seu primeiro momento em cena, nunca deixa de nos surpreender e nunca deixa de ser o nosso herói. Imperfeito, mas perfeito à sua maneira. Uma maneira muito sua que se tornou, claro, muito nossa.
Muito se discute se as sequelas estão à altura deste filme, em especial a mais recente (antes do capítulo que estreará este mês), Kingdom of the Crystal Skull. Considero essa discussão completamente inócua. Injusta para esses filmes e até ofensiva para Raiders of the Lost Ark. Alguma sequela de Apocalypse Now ou 2001: A Space Odissey poderia estar à altura dos originais? Raiders é um filme dessa categoria. É um filme sem falhas, é um filme que talvez nunca sequer seja igualado por uma outra obra original neste género. É um filme lançado na década de 80 e que quer, acima de tudo, divertir-nos enquanto vemos nazis a serem humilhados no passado. Hoje um filme original do género estaria preocupado com coisas que Spielberg teve o luxo de não ter que se preocupar. E, verdade seja dita…náo há mais Spielbergs por aí. É verdade que existem realizadores, tecnicamente, no mesmo patamar de Spielberg, mas não há um único que o supere – ou sequer se aproxime – nesta praia. E se queremos falar de técnica, é impressionante a forma enérgica como ele filma a ação, tudo tão simples, tão claro, tão vísível que só poderá deixar uns tais irmãos Russo totalmente embaraçados pela forma como o fazem. E quanto a planos…minha nossa, aquele plano incrível no deserto em que apenas vemos as sombras dos elementos em cena é um dos melhores planos da história do cinema.
“Não são os anos, querida, é a quilometragem”. 42 anos se passaram e Raiders of the Lost Ark continua a ser o melhor filme do género e sempre será um dos grandes da história do cinema. Spielberg, no topo das suas capacidades, é incomparável a filmar ação e aventura e com Indiana Jones fez-nos a todos ponderar um futuro como arqueólogos. Cena icónica sucede a cena icónica numa aventura tão boa que até parece algo ilegal.