Revisualizando: A História de Ricky (ou o original “Lik wong” ou a obra que o originou: “Riki-Oh”

A absurdidade só o é quando o todo a relega a tal estatuto, por diversos factores. Incompreensão, desafio da norma, exagero, ilógica, imoralidade…

Geralmente o que é absurdo é mau. “Lik wong” soca e esventra essa concepção. Riki-Oh Saiga é um protagonista absurdamente forte com incompreendido arco de violência, que desafia a norma daquela prisão, exagerando na execução e sobre-representação, com meios ilógicos e detalhes filmados de membros e sangue com requinte imoral.

Como adaptar uma obra? Há manual sobre isto? Como adaptar bem? Quais os critérios? Quem os convencionou? Onde? Quando?

Vamos por partes…

Riki-Oh é o nome da manga escrita por Masahiko Takajo e ilustrada por Tetsuya Saruwatari. A tiragem original aconteceu entre 1988 e 1990.

O enredo: Riki-Oh Saiga (que se traduz directamente em “Poderoso Rei” ou “Rei da Força”) é um sujeito enquadrado num Japão pós-apocalíptico afectado pelo aquecimento global e guerras mundiais, onde a escassez e declínio económico exponenciaram a criminalidade. Às tantas, acontece algo (vão ler a manga) e Riki é encarcerado numa prisão de alta segurança. Aí há porradaria brutal, ultra-violenta, desenhada com tanta vivacidade quanto os traços de um lápis consigam nas mãos de um artista talentosamente sádico.

“Lik wong” pega precisamente neste arco da obra original e, com adições aqui e subtracções ali ao enredo, adapta ao grande ecrã.

O enredo: Riki-Oh é um estudante de música com força prodigiosa sobre-humana. Depois de a sua namorada ter testemunhado um negócio de droga no prédio onde vivia, Riki mata um senhor do crime e é sentenciado a 10 anos de pena de prisão por homicídio involuntário. Aí a porradaria toma conta.

Respondendo a questões…

Como adaptar uma obra?

Com interpretação idónea e tão fiel quanto exequível do material-fonte, no tom certo e humildade (o original já existe. Não vamos agora nós pasteleiros querer melhorar o bacalhau-à -bràs do Sr. Brás, conhecido cozinheiro de peixe!). Não vamos mais longe. Prova disto com “Lik wong” está no trailer.

Há manual sobre isto?

Não há nem deve haver. Era o que mais faltava agora escrever instruções sobre como criar arte, seja de que formato for, de qualquer proveniência! Há sim carradas de adaptações péssimas de obras originais boas a muito boas, pouquíssimas adaptações boas de obras já boas e estranhos casos de sucesso da adaptação face ao material-fonte altamente deficiente e ainda mais de nicho por ser tão questionavelmente mau. Instruções, não, mas lições a retirar dos bons e maus exemplos, definitivamente.

Como adaptar bem?

Com absoluta paixão pelo material-fonte e tanta mais que se consiga obter do elenco e restante equipa de produção que essa paixão exista neles (Henry Cavill em The Witcher) ou infundir essa paixão no restante elenco para que se confie no projecto e processos (Peter Jackson para Viggo Mortensen). Ajuda imenso a consultoria e aval dos criadores da obra original (primeiras cinco temporadas de Game of Thrones).

Quais os critérios?

Não. Estragar. O. Original. Mais directo que isto será: Uwe Bol, se há algo feito que muita gente gosta e ama, não tentes fazer disso filme. Não tu. Não já. Não.

Quem os convencionou?

O público. O último a saber, a consumir e a falar com o seu suado dinheiro. Tanto o público que vai ao cinema ver um filme chamado Resident Evil e observa a Mila Jovovich a aplicar um pontapé rotativo num cão-zombie como o público que anda a arfar de pânico desde a Playstation PSX até 2022 com uma apavorantemente sensual Lady Dimitrescu, que se recusa terminantemente a apoiar uma tentativa avassaladoramente fraca de insistir em inventar com o que já existe e é bom com aquele projecto volumetricamente fecal da Netflix que rapidamente teve o seu fim mas que não escapámos de ter uma temporada a céu-aberto.

Onde?

Actualmente, na internet. Um dos benefícios de qualquer portador de boca e ligação à web poder expressar o que pensa e gosta é esse, por enquanto.

Quando?

Antigamente havia mais sofrimento perante más adaptações (aquele Street Fighter do Van Damme) e satisfação aliviante sobre as boas (The Godfather, Trainspotting, Schindler’s List). E toda esta dor de crescimento educou, à pancada, o público que atravessou a era de estar restrito aos filmes da TV, pese embora o critério de selecção dos canais, por cá, pelas melhores opções para obter mais audiência, com a contrapartida de passar muita palha televisiva para preencher horário, para agora viver numa abundância de escolhas que tanto estreitaram o que de bom se faz fora do universo de Hollywood como escancararam as comportas de mediocridade de tudo o que de mau se faz e promove por aí.

Não é por acaso, este lamiré sobre adaptações de obras. “Lik wong” tomou uma abordagem “splatter”, bem série B, para replicar as melhores splash-pages da manga onde o recurso a efeitos práticos traduziu perfeitamente a alma e vontade apaixonada que o realizador teve por essas sequências, mesmo que o resultado dê para rir pelo exagero.

O respeito pelo universo Ricki-Oh foi prestado. O encapsulamento da história no enquadramento da prisão disse isso mesmo: não estamos a querer elevar nada nem exacerbar daqui para voos prepotentemente ambiciosos. Queremos contar esta história de Riki-Oh Saiga.

No fim das contas, este pedaço de entretenimento é character-driven por muito superficial que Riki-Oh Saiga se apresente porque cada soco, pontapé, tripa de fora, esguicho de sangue e parede derrubada são adições à camada do herói que se mostra completo no fim do filme.

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