É muito difícil um filme conquistar seu público quando seu protagonista não passa de uma pessoa antipática e desprezível. Quando não torcemos pela personagem principal, é pouco provável que consigamos nos conectar com o enredo da obra. Shortcomings, felizmente, trabalha muito bem com seu cansativo protagonista, apoiando-se em ótimos coadjuvantes e um texto de inteligente ironia que compensa a falta de carisma da personagem principal com uma autoconsciência ácida, que deve cativar, principalmente, o público mais aficionado por cinema.
Ben (Justin H. Min) é um cinéfilo de descendência japonesa que gerencia um cinema em decadência. Seu relacionamento com a namorada, Miko (Ally Maki), não anda bem e, após uma briga que resultou no afastamento temporário entre os dois, Ben busca conforto na amizade com Alice (Sherry Cola) e aventuras com outras mulheres.
Ben é insuportável. O irônico cinéfilo é arrogante, vitimista, egocêntrico, hipócrita, egoísta e misógino. Uma pessoa completamente inconveniente. É muito difícil torcer por ele durante o filme e, com o passar do tempo, percebemos que o prazer em assistir a Shortcomings se encontra no ato de rir da incoerência e desgraça de Ben, ao mesmo passo que comemoramos o sucesso e evolução dos que o cercam. Pois as personagens secundárias e o tom irônico do filme são os fatores que realmente te prendem a Shortcomings.
Os coadjuvantes aqui servem maioritariamente três propósitos: ignorar o senso de superioridade de Ben, e zombar disso; provar intensamente e profundamente de suas intimidades, até perceber o quão nocivo ele pode ser; ou estar sempre ao seu lado, suportando seus defeitos e tentando auxiliá-lo a enxergá-los e evoluir como pessoa. O terceiro exemplo cabe especificamente à personagem Alice, que é, de longe, a melhor presente no filme. A sensacional atriz, Sherry Cola, já havia me impressionado com seu trabalho no divertidíssimo Joy Ride (leia a crítica aqui), e agora, com sua super carismática Alice, fez de mim seu grande fã. Alice não é uma pessoa perfeita, longe disso, mas é, com certeza, uma coadjuvante perfeita. Sempre que em cena, ela alegra o ambiente com humor e sua tendência autodepreciativa. É também com Alice que temos uma verdadeira e recompensadora jornada de aprendizado e evolução. Enquanto isso, para Ben, resta uma narrativa que não deixa de ressaltar que talvez não haja esperança de mudança para ele.
Como já disse, Ben é cinéfilo, e é interessante como sua construção pode, e deve, servir como um espelho para grande parte do público de Shortcomings. Existe uma tendência em rotular a cinefilia como algo negativo, e isso não ocorre à toa. Cinema é uma das mais importantes formas de arte que conhecemos, portanto, é comum que pessoas mais conectadas e dedicadas ao meio se sintam em um nível superior às demais. É também um vício no meio cinéfilo uma cobrança, que vem em forma de uma lista de produções, comportamentos ou posições que alguém que se atreva a chamar a si mesmo de cinéfilo deve conferir, manter ou defender. É como se, para receber o “certificado de pureza e elevação cinematográfica”, alguém devesse cumprir uma série de provações. Bom, Ben é alguém que se sente superior a muitos e, por isso, passa boa parte do filme julgando e inferiorizando quem considera abaixo do seu nível. E a forma com que o texto de Adrian Tomine e a realização de Randall Park lidam com o comportamento de Ben é curiosa, e bem divertida. Shortcomings sabe que seu protagonista se leva muito a sério, que ele diminui o valor dos outros em comparação a sua “elevação artística”, e sabe também que boa parte de quem assiste ao filme pode se relacionar com ele, ou pelo menos enxergar nele pessoas com quem lida diariamente. Assim, Shortcomings assume um tom de ironia que, constantemente, apresenta incoerências em tudo o que Ben representa. As pessoas à sua volta, sejam elas mais “alienadas” ou cultas, são tão ou mais intensas que ele, e percebemos que enquanto ele se afasta desses que considera insuficientes, na verdade, são eles mesmos quem o superam e o deixam para trás.
E como bem disse anteriormente, Ben é um grande hipócrita. Alguns dos mais fortes exemplos disso se resumem em spoilers do filme, então me atentarei apenas à superestimação da arte que ele consome e em como ele a consome. Ben eleva o nível do que considera artístico, quase enfatizando a erudição da arte de fazer e consumir cinema. No entanto, ele não respeita o cinema com o respeito que tanto prega. É comum, por exemplo, ver cenas em que ele assiste a filmes em sua casa com o celular no rosto (é revoltante!). Vemos também Ben deixar de dar valor aos demais quando concentrado na experiência cinematográfica – é o impacto da arte em detrimento ao impacto de quem o ama em sua vida. Fica muito claro, em certo ponto, que para ele, não se trata do valor real da arte ou de quem o cerca, e sim de como isso o afeta e o transforma, e nada mais. Para Ben, o que importa é o seu eu, e a elevação disso.
E é a partir daí que entra a sacada da realização e o argumento do filme. Shortcomings é um filme autoconsciente, pois sabe que todos nós, cinéfilos, temos um pouco de Ben em nós mesmos, e ri muito disso. O longa é uma comédia realizada com um formato e ritmo muito comerciais, mas apresenta ares de um cinema mais autoral. Randall Park experimenta, por vezes, com cortes não muito convencionais, e até flerta com certa abstração, como o que ocorre na introdução do filme, em que apresenta as três personagens de maior destaque, Ben, Miko e Alice, lado a lado, encarando a câmera, logo abaixo do título do longa. Shortcomings tem um pouco de tudo, e funciona bem dos dois lados. Podemos dizer que o filme se encontra num limbo entre o cinema autoral e o comercial. Com isso, a realização se sente à vontade de fazer graça de todas as esferas do mundo audiovisual. Shortcomings debocha da superestimação de quem se considera arthouse, e critica o vazio de quem produz entretenimento. Ou seja, o filme sabe que todos nos levamos a sério demais, e que deveríamos perceber com mais clareza nossa insignificância e estupidez. Interessante demais.
Interessante também é perceber que Randall Park, que também é ator, faz parte do universo cinematográfico da Marvel. O fato faz das piadas do filme em relação aos blockbusters ainda mais divertidas, principalmente quando direcionadas à própria Marvel. Mais interessante ainda é a escolha de elenco para a personagem Gene, que é zombado por seus colegas de trabalho por ser fã da Marvel, e que, ainda por cima, tem como versão favorita do Homem-Aranha, a vivida por Tom Holland. Pois Gene é interpretado por ninguém mais que o ótimo Jacob Batalon, que também vive o melhor amigo de Peter Parker, Ned, na mais recente trilogia do Aranha. Parabéns para a equipe de casting de Shortcomings, a ideia é muito boa!
Mas, antes de finalizar, é bom comentar que Shortcomings não se trata apenas de uma personagem e sua relação com o cinema. Tal conceito, na verdade, serve como um grande pano de fundo para falar da forma com que Ben lida com relacionamentos interpessoais, e discutir todo um comportamento muito comum na sociedade em que vivemos. Ben enxerga muitos defeitos em tudo e em todos, mas se recusa a enxergar os próprios. Ao contrário de entender suas próprias deficiências emocionais e intelectuais, ele prefere terceirizar sua culpa, seja jogando tudo para cima de outras pessoas, ou em problemas sociais, preconceitos, e coisas do tipo. Ben se vê como uma grande vítima, e utiliza de elementos externos, que podem, sim, ser nocivos a ele, mas que nem sempre o estão afetando diretamente, como, por exemplo, o preconceito com pessoas asiáticas, para mascarar, ou desviar a atenção, de suas fragilidades e inseguranças. Ben pode ser uma personagem antipática, porém, chamá-lo de raso ou mal desenvolvido, não é nem um pouco plausível.
No fim das contas, Shortcomings tem como protagonista, de fato, alguém com quem não podemos nos conectar. Entretanto, o filme encontra formas inventivas de compensar tamanha antipatia. Shortcomings é, se pararmos para analisar, o oposto de Ben. É muito consciente de quem é, sem nunca se levar a sério demais, e respeita quem acompanha sua narrativa, sem jamais subestimar ou insultar seu público. O filme é divertido, então, por favor, assistam com seus telefones bem longe do seu alcance. Aliás, façam isso com qualquer filme que vocês assistirem. É sério.