Um filme passado no Natal que envolve o iminente fim do mundo, seja por uma morte cruel e dolorosa decorrente de fenómenos naturais, seja porque há quem tenha a opção – providenciada a nível estatal – de tomar um comprimido e acabar com o sofrimento mais cedo. Parece isto estranho e depressivo o suficiente? Agora junte-se um tom de comédia. Espantados? Há aqui muito para digerir!
O tema permite-nos – exige-nos – reflexão: o homem deu cabo do mundo em que vive e as alterações climáticas trouxeram um espetáculo belo de se ver, mas totalmente devastador, arrastando com o vento a aniquilação de qualquer alma que encontre pelo caminho. Uma família britânica junta-se uma última noite, na noite de Natal, para conviverem e relembrarem os momentos que viveram juntos. Uma família que – como a maioria das famílias – está recheada de podres, intrigas e ódios de estimação. Só que esta noite é especial. Eles sabem que é a sua última noite e, por isso, tudo o que têm para dizer – e não dizer – é aqui revelado com consequências imprevisíveis.
A premissa é excelente: faz-nos pensar sobre as nossas escolhas individuais e coletivas; faz-nos pensar sobre as nossas prioridades; faz-nos pensar sobre perda, sobre sofrimento, sobre luta, sobre confiança, sobre família e amigos. Tem um elenco fortíssimo e todos eles estão bem à altura dos acontecimentos, desde Keira Knightley a Matthew Goode, passando por Lily-Rose Depp ou Kirby Howell-Baptis. No entanto, a estrela é Roman Griffin Davis, o miúdo – aqui nós podemos falar assim – de Jojo Rabbit, que volta a ter uma interpretação muito à frente para o que se espera de uma criança de 14 anos. Sempre com um tom inquisitivo, deixa-nos dúvidas até acerca de convicções pessoais que temos sobre a ciência, governos ou até a esperança por um mundo diferente. Essa esperança permanece encaixada na sua personagem até ao final, mesmo quando todos os outros parecem ter já aceite o que lhes é reservado.
Silent Night é um filme complicado de definir e é também um filme que não irá agradar a muita gente que procura uma abordagem mais tradicional. Obviamente que os temas pesados aqui abordados poderiam ter tornado isto numa obra-prima reflexiva e dramática, mas a realizadora Camile Griffin foi também quem escreveu o guião, trazendo-nos uma proposta bem diferente, introduzindo vários elementos cómicos e tornando o filme numa comédia negra. Será a melhor abordagem? Não tenho a certeza e consigo imaginar o quão bom isto poderia ter sido caso tivesse tido um tom mais sério. Mas mérito deve ser dada a uma obra que arrisca tanto e que continua a fazer-me pensar na mesma, dias após a sua visualização. Aqui e ali, Griffin brinda-nos ainda com uma série de planos de câmara interessantes, sempre acompanhados por uma música natalícia que, associada ao tema, torna tudo ainda mais negro.
A abordagem mais cómica a um tema incrivelmente pesado e sério pode afastar quem não esteja totalmente preparado para entrar neste mundo à beira do seu fim. No entanto, filmes que me fazem refletir – mesmo na sua absurdidade – merecem sempre a minha atenção. Carregado por um elenco de luxo, Silent Night tem muita coisa para dizer, mas resulta ainda mais nas interrogações que nos coloca.