Spiritwalker (ou o respeito na suspensão da descrença)

O cinema asiático tem, para mim, o seu espaço cunhado, firmado e sem necessitar de provar nada ao resto do mundo. Ainda assim há lugar à inovação, diferença, exploração e desconhecido.

Sempre que se fala em filme asiático, a fasquia é altíssima, estando eu mal-habituado com o maravilhoso e inqualificavelmente bom por toda a história que um sujeito de olhos permanentemente semicerrados se tenha lembrado de filmar, escrever ou interpretar algo para passar numa tela.

Ainda assim há espaço imenso de sobra entre o lixo filmado e os exemplos megalíticos de diferença boa para criar por criar, sem ambições doentes de gravar o que quer que seja nos anais da grandiosidade das artes.

Spiritwalker não tem ideias novas, não inova em estrutura e não revoluciona em nenhum aspecto. Mas não é por aí que se quer firmar. É uma óptima peça de entretenimento, com pitadas de fantástico, sempre premindo por solidez, sentido, nexo e respeito por quem o veja.

A par de viagens no tempo, o flashback é aquela ferramenta perigosa numa narrativa. Bem usado, pode até ser estruturalmente preponderante e fazer com que o filme seja “sobre isso”. Mal-usado, o filme passa a ser “infelizmente sobre isso”, artificial, apressado, atalhado e insultuoso.

Memento (2000) é o exemplo que salta imediatamente da memória em como o flashback é fundamental para veicular e estruturar a visão de Christopher Nolan num produto final inolvidável.

Infinite demonstra que não é culpa da ferramenta, mas sim de quem a manuseia se no fim a mediocridade prevalece sobre a ambição, orçamento e meios para poder ter feito muito melhor que o que fez.

Boss Level brinca mais livremente com a repetição, recuos e avanços cíclicos da história e não se leva a sério, o que retira pressão a quem cria e participa nessa criação, o que foi perceptível no filme e por consequência já deixa um sorriso satisfatório por o ter visto.

Spiritwalker entra aqui no comparativo depois de entender que o flashback foi doseado com bom gosto acima de tudo. Começa logo com a diferença de um flashback que foi um condimento a pontuar o que o realizador (deste como seu segundo filme) e escritor Jae-geun Yoon concebeu, em vez de uma sequência enfiada numa determinada altura para contar ou mostrar o que não apareceu na narrativa linear (All the Old Knives) porque sim.

Os diferentes pontos-de-vista dos intervenientes no evento comum e respectivos tentáculos que daí partem não são nada de conceptualmente novo, mas interessam, mais ou menos, pela forma de como a premissa nuclear do filme os faz interessar.

O protagonista Yoon Kyesang na pele de Kang I-an, foi muito competente na prestação tanto quanto Jamie Foxx foi em Django: ambos não precisaram falar muito, o que falaram foi importante e o que melhor se pedia deles (ou dos seus duplos) foi muito bem cumprido.

Quem rouba o filme invariavelmente reparte a taça numa porção de 70% (interpretação fora de série, memorável, fluído, demarcado dos restantes) para Yong-woo Park como vilão e 30% (alívio cómico, colaborador do todo, que não atrapalha e funciona) para Ji-hwan Park.

Houve uma certa timidez que apreciei no uso de efeitos especiais pois essa é outra ferramenta que, masturbada em demasia, não dá prazer e facilmente magoa a experiência geral, disparando a seco e relegando-a a um espectáculo oco.

Notei devidamente a homenagem a John Wick, noutro aspecto digno de reparo: a acção. Como a narrativa só envolve pouco mais de uma mão cheia de pessoas, a acção foi a serviço desse círculo restrito de intervenientes. Jamais iria abominar mais acção, mas gostei particularmente da sensatez em jogar esta cartada apenas quando se considerou estritamente necessário e sempre ajustando a escala das sequências.

Spiritwalker fica-me pelas 3 estrelas e meia pois não brincou comigo e com o meu tempo, procurando suspender a minha descrença com muito cuidado onde a estrutura, ritmo e narrativa foram igualmente respeitadas na sua execução e entrega até mim onde talvez com mais arrogância ou audácia, o filme fosse algo mais, mas não é nada mau como está.


Spiritwalker
Spiritwalker

ANO: 2021

PAÍS: Coreia do Sul

DURAÇÃO: 108 min.

REALIZAÇÃO: Jae-geun Yoon

ELENCO: Yoon Kyesang, Ji-Yeon Lim, Ji-hwan Park

+INFO: IMDb

Spiritwalker

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