O terror da nova geração em Talk to Me

Se me dissessem que uma dupla de youtubers se preparava para lançar um filme de terror, eu, provavelmente, não iria dar muita importância. No entanto, 95 minutos bastaram para que mais uma página da lição “não julgar o livro pela capa” tenha sido escrita. Os irmãos australianos, Danny Philippou e Michael Philippou, também conhecidos por RackaRacka, podem ter um conjunto de videos irritantes – aos gritos e de edição esquizofrénica – a dar-lhes fama. Isso até será o que possibilitou este filme, mas em Talk to Me, os manos demonstram que percebem o terror e percebem os jovens dos dias de hoje como poucos.

A história é bastante simples. Um grupo de adolescentes junta-se para invocar espíritos que são chamados através de um aperto de mão. Uma mão embalsamada que os faz ver almas perdidas depois de dizerem “talk to me”. Uma mão embalsamada que permite que essas almas se apoderem dos seus corpos se disserem “I let you in”. Parece estúpido? São adolescentes. Tudo parece estúpido nessa fase, mas garanto-vos que, se garantido fosse que nada aconteceria caso se cumprissem determinadas regras, até muitos adultos iriam procurar e voluntariar-se para esta experiência única e transformadora. O problema é que, no caso deste grupo, as regras não são cumpridas, algo que também se sabe muito acontecer quando falamos de adolescentes. 

A jovem no centro desta trama é Mia (Sophie Wilde). Se qualquer adolescente já tem os seus fantasmas e a confusão mental próprias da idade, Mia lida ainda com a morte da sua mãe, que terá morrido acidentalmente após uma overdose de medicamentos. A sua relação com o pai é distante – pois acredita que o mesmo esconde-lhe algo sobre a morte da mãe -, mas refugia-se numa outra família que a acolhe como sua. É a essa família que pertence a sua melhor amiga, Jade (Alexandra Jensen), que vive com o irmão mais novo, Riley (Joe Bird) e com a mãe, Sue (Miranda Otto). Com vontade de mudar algo na sua vida e sentindo nada ter a perder, Mia decide participar na experiência. Talvez o tempo recomendado para a experiência se tenha excedido e as coisas parecem ter ficado diferentes com ela. E tudo se descontrola ainda mais quando o irmão mais novo da sua melhor amiga decide fazer a experiência, com a permissão de Mia…

Talk to Me é um filme divertido e um filme com um tom até leve e convidativo durante todo o seu primeiro ato. Após uma excelente cena de abertura, somos convidados a entrar no mundo destes jovens que se comportam exatamente como deles é esperado. Jovens serão sempre jovens. Antigamente, não existiam telemóveis ou videos partilhados em tempo real, mas o fascínio pelo proibido, pelo perigoso e pelo desalinhamento sempre existiu. As brincadeiras deste grupo adequam-se ao que se vê um pouco por todo o mundo, com os famosos challenges – mais ou menos perigosos – a ser elemento de ligação entre várias culturas e diferentes pessoas espalhadas pelo mundo. Tudo isso vai beber e, ao mesmo tempo, confluir no sentimento de pertença, que tanto é procurado nessa fase da nossa vida. Um dos pontos fortes deste filme é que tudo parece orgânico, muito graças a um elenco muito bem escolhido, onde diferentes personalidades nos são mostradas, sempre fazendo sentido como um grupo. Todos – ou quase todos – nós convivemos e fizemos partes de grupos na adolescência onde existiam pessoas totalmente diferente de nós, pessoas que só fazem sentido fazer parte do “nosso grupo” nessa fase, nunca mais voltando a vê-los no futuro. São os anos da imortalidade. Os anos em que o tempo anda devagar. Quando temos tempo para tudo.

Ora, se o elenco é forte, ninguém brilha mais do que Sophie Wilde que é o absoluto destaque deste filme. Esta é uma daquelas interpretações com capacidade para criar uma estrela imediata, com todas as suas micro-expressões no papel de Mia a resultarem de modo excecional, sendo muito fácil perceber tudo o que se passa dentro da sua cabeça. É fácil identificarmo-nos com ela, mesmo que tragédias similares nunca nos tenham ocorrido e ainda mais fácil é perceber porque é que uma outra família teria tanta disponibilidade para a acolher, tal o seu carisma e personalidade maior do que a vida. Seja quando brinca, seja quando parece ter uma atitude descontraída, seja quando sente medo ou quando toca nas suas feridas interiores, tudo o que nos é dado por ela é feito de um modo realista e muito cativante. 

Tecnicamente, Talk to Me é também um filme superior. Alguns elementos sonoros são surpreendentemente eficazes (até uma almofada a voar!), mas o destaque maior vai para o que é colocado no ecrã, através de uma imaginativa utilização da câmara – quase sempre em movimento, sempre com as melhores escolhas de ângulo – e de efeitos práticos próximos da perfeição. Sempre que o espírito entra dentro de um dos adolescentes, é perfeito o casamento entre as atuações credíveis e a maquilhagem utilizada para demonstrar essa condição.

Ainda assim, perfeição não existe e existem algumas relações ou personagens – como a de Daniel, namorado de Jade –  que poderiam ser melhor trabalhadas. Mesmo próximo do final do segundo ato, há também uma secção do filme que não tem a mesma consistência do que lhe precede. Por breves minutos, também nós parecemos presos num limbo sem perceber como dali vamos sair. Felizmente, a conclusão não foi por caminhos esperados, satisfazendo muito, quer temática, quer narrativamente.

Num ano em que o terror não tem estado a um nível particularmente elevado, Talk to Me é uma das melhores surpresas de 2023. De uma irritante dupla de Youtubers, chega-nos aquele que é o melhor terror de 2023 (aos dias de hoje). Essa tal dupla demonstra compreender o terror tão bem como compreende os jovens de hoje, recorrendo a interessantes mudanças de estilo, a uma imaginativa utilização da câmara e a um muito bem escolhido elenco. Sophie Wilde tem uma fascinante interpretação que lhe transformará numa estrela automática. 


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Talk to Me

ANO: 2023

PAÍS: Austrália

DURAÇÃO: 95 minutos

REALIZAÇÃO: Danny Philippou e Michael Philippou

ELENCO: Sophie Wilde; Alexandra Jensen; Joe Bird; Otis Dhanji; Miranda Otto; Zoe Terakes

+INFO: IMDb

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