Tár é um daqueles filmes em que uma grande atuação se destaca imensente roubando praticamente todos os holofotes para si. Mas é, também, um filme muito elegante e conciso, estruturado por um primor técnico de encher os olhos. E é, além disso, um filme que pode enganar desavisados que, assim como eu, mergulham de cabeça na obra sem saber direito do que ela se trata. Tár tem forma e tom de biografia, e foi disso que achei que o filme se tratava até fazer pesquisas para saber mais sobre a mulher cuja vida fora abordada no filme e dá nome ao título. Entretanto, não pude me aprofundar mais na vida dela. Lydia Tár é uma personagem ficcional e, acreditem em mim, isso é impressionante.
Pois comecemos falando da estrela da obra. Cate Blanchett está simplesmente magnífica na pele de Lydia Tár! Há muito não assistia a uma atuação tão efervescente e apaixonada. Blanchett se entrega de corpo e alma em um papel que visivelmente exigiu muito dela mental e fisicamente. Tár é uma mulher egocêntrica e genial, que pode ser, ao mesmo tempo, fria e calorosa. Uma mulher que, por conta da sua personalidade complicada, reativa e combativa, pode vir a pôr a perder tudo o que conquistou, seja a família que formou, seja os laços de confiança que conquistou, seja a carreira profissional que se vê no seu ápice de sucesso. Lydia Tár protagoniza um dos estudos de personagem mais intrigantes e completos que já assisti.
Blanchett e Todd Field, realizador e argumentista do filme, criaram uma personagem tão complexa, cheia de nuances comportamentais e particularidades gestuais, que Lydia Tár exala vida em cena, e convenceria qualquer um de se tratar de uma figura real, e não ficcional. E esse é o principal motivo pelo qual Tár se parece tanto com um filme biográfico. Além de apresentar grande foco no brilhante trabalho da compositora e regente musical, detalhando os métodos que usa para dar vida ao seu trabalho, Tár tem como protagonista uma personagem cujo método e complexidade da atuação são característicos de obras do tipo. Em biografias, busca-se sempre mimetizar à beira da perfeição as personagens biografadas e, aqui, Blanchett e Field esforçam-se ao máximo para serem fiéis a cada mínimo aspecto físico ou mental da personagem que existia, antes de ganhar vida em cena, apenas em suas mentes. E o resultado de tamanho esforço e dedicação é uma personagem intensa e expansiva, que extrapola o limite da duração do filme, e fica contigo até horas depois da seção, fazendo valer cada segundo de atenção depositado na obra.
Mas, como já adiantei na introdução deste texto, as qualidades de Tár não ficam por aí. A realização de Todd Field é de uma elegância exemplar. O realizador conduz seu olhar em cena como se deslizasse entre as personagens e os espaços em que elas se encontram. Cenas simples com pouca informação visual, ou mais complexas repletas de elementos em tela, não interessa. Field sempre te mantém completamente ciente de que elemento ele quer manter em foco para dar segmento a sua trama. Com um belo planejamento de posicionamento dos atores e uma apurada mise in scene, Field é capaz de flutuar pelos espaços filmicos com uma fluídez tão natural, que se torna quase imperceptível sua interferência.
O argumento de Tár também tem muita elegância. Nada de exposição nos diálogos, contextualizações de universo, ou coisas do tipo. Não. Todd Field escreve seu filme com a naturalidade que está presente em qualquer fragmento de nossas vidas. As personagens vivem em um universo em que já estão completamente imersas, então não há espaço para localizar o público de detalhes que podem vir ou não fazer grande diferença na trama. Resta a nós, que assistimos ao filme, tentar nos encaixar entre as dinâmicas profissionais e relacionais de Lydia Tár, enquanto ela segue sua vida sem pausas para nos dar satisfações. Só quem já escreveu um argumento sabe o quão complicado é fazer o que Field fez aqui. Brilhante.
Tár é engajante, do início ao fim. Acompanhar sua protagonista é excitante, pois Lydia Tár é uma mulher complexa, difícil de decifrar, que te provoca a tentar entendê-la a todo momento. É possível sentir compaixão, desgosto, empatia e pena por essa personagem que tem muitos mais tons de cinza em sua personalidade complicada do que a maioria das personagens ficcionais que vemos por aí. Todd Field é grande aliado no desafio de desvendar Tár, que suaviza o terreno para que possamos acompanhar toda intensidade da linda e cheia de vida personagem que criou junto da excelente atriz Cate Blanchett. Belíssimo trabalho da dupla de artistas. Foram capazes de criar uma personagem que segue contigo para além do correr dos créditos finais, e um filme que cresce ainda mais cada vez que se pensa e discute sobre tal. Mais uma vez, volto a afirmar: brilhante!