“A vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida”. Quem cunhou isto foi Oscar Wilde, mas é Herman Wouk o verdadeiro pai do que se efectivou, para mim, o melhor filme de tribunal de toda a minha vida.
Vamos por partes.
Parte Um:
Sou um incondicional fã da temática legal no todo, e absolutamente no seu formato futebolístico: o julgamento.
O sensacionalismo, fantasia e condimentos cinematográficos fizeram-me ficar completamente rendido a todo o pugilato verborrágico em adaptação artística com muitas liberdades sobre o que envolve um julgamento:
– Find Me Guilty (2006): com um irreconhecivelmente completo actor Vin Diesel no papel de testemunha-chave de um julgamento da maffia italiana de Nova Iorque;
– 12 Angry Men (1957): um clássico de qualquer entusiasta de 7ª arte, do não-menos icónico Sidney Lumet, que claramente transcende este nicho de “tribunal”, que dá a perspectiva das deliberações de um júri sobre a decisão de condenar ou absolver o réu;
– The Trial of the Chicago 7 (2020): Aaron Sorkin a transbordo ao escrever e realizar este filme de tribunal, é um dos exemplos de alto valor de entretenimento pelos diálogos dinâmicos e que faz com que isto seja quase um filme de acção;
– …And Justice For All (1979): não é só um fantástico álbum de Metallica, quanto mais de toda a história da música, mas também uma nova demonstração do quão Al Pacino é intocável, desta feita como advogado de um juiz “culpado” e outros réus inocentes, com icónicas cenas de julgamento;
– Suits (2011 – 2019): Harvey Specter (Gabriel Macht) é o advogado-playboy corporativo de amplo sucesso profissional e coital nesta série que por 8 anos conseguiu, para mim ter apenas 1 temporada má em que, acompanhando a firma de advogados onde ele trabalha, há muita e inevitável sequência de julgamento, que para mim é dopamina legal;
– Better Call Saul (2015-2022): Saul Goodman (Bob Odenkirk) é a prole de amplo sucesso de vários factores – é o advogado do ficcional professor de química mais famoso de sempre; é dotado de uma sagacidade intelectual e emocional que são o sonho-molhado de qualquer estudante de Freud; aparece com a mesma estética de Breaking Bad como, para mim, o perfeito spin-off (testado e minimamente bem-sucedido com El Camino); e surge depois de Suits, que é o compêndio ideal de como fazer as sequências de tribunal com alto valor de entretenimento;
– A Few Good Men (1992): “- I want THE TRUTH!” |” – You CAN’T HANDLE the truth!…” E de facto alguns bons homens estão reunidos neste clássico com uma das fala/contra-fala mais famosas do cinema: Rob Reiner realiza, Aaron Sorkin escreve, Tom Cruise e Jack Nicholson protagonizam, e mais um punhado de estrelas recheia este filme com tema de julgamento militar onde, de entre eles, lá está Kiefer Sutherland.
Parte Dois:
– Assisti diligentemente ao julgamento de Kyle Rittenhouse.
Queria tirar a prova dos nove se estava a ser inebriado pela codeína hollywoodesca e qual a melhor forma de o fazer, que não seja assistir às sessões de uma situação real, delicada e de ampla nuance criminal, política e social como foi o evento de Kyle Rittenhouse (de 17 anos) que feriu um sujeito e matou outro quando, armado com a sua AR-15 (uma espingarda semi-automática) aquando dos protestos Black Lives Matter em Kenosha, Wiscounsin?
– Assisti religiosamente ao julgamento cível de Depp v Heard.
Aqui o factor-entretenimento precisava ser inalado, como se uma linha de coca colombiana espevitasse o processo entorpecente da ganza índica criminal com que me deparei quando dei por mim exausto também pela impavidez, incredulidade por descoberta e “des-inocência” de como as coisas são num julgamento criminal naqueles EUA.
Fi-lo por mais razões:
– observar um julgamento célebre em que muito material já tinha sido libertado para escrutínio público de duas celebridades que, cada uma à sua maneira, não prestam, noutra instância judicial que não foi aberta a público e entender como outra perspectiva (ele processa ela) noutro país, com outro contexto resultariam nesta segunda-mão deste jogo judicial de Champions League;
– estava a torcer para que Amber Heard fosse responsabilizada pelas inverdades que proferiu, as verdades que ocultou e as consequências que deveria ter tido e não teve por mentir, omitir e exacerbar a seu favor e favorecimento, mas isso são outros quinhentos.
Aproveitei, em ambos os julgamentos (criminal e cível) o privilégio de estar a assistir aos streams das audiências via youtubers-advogados. O input e contextualização foram muito interessantes para fazer sentido de como a coisa acontece e deve ser interpretada na vida-real;
O meu veredicto: se não fosse um processo tão chato, moroso, inglório em terrenos lusos, desgastante e dispendioso, decerto teria seguido carreira na Lei pois tanto as perspectivas ficcionais como reais são de meu genuíno interesse.
As minhas alegações-finais: só com esta particular experiência e interesse é que sinto ter tido o preparo para verdadeiramente apreciar The Caine Mutiny Court-Martial em toda a sua densidade e explendor.
Parte Três:
Ao pesquisar de como ver este filme, tropecei na informação de que é um remake do filme original de 1954. Saltou-me imediatamente à vista que Herman Wouk está creditado com escritor tanto no original como nesta versão de 2023. Só a diferença de filmes é de 79 anos. Wouk, pela minha conjectura teria cerca de 100 anos de idade ao ter escrito ambos os filmes.
…mas não liguei. Fui ver o filme de 2023 antes que me fosse revelado algo antes da visualização.
Fiquei completamente rendido ao que agora considero o meu filme de tribunal favorito de sempre!
As prestações dos actores, TODOS os actores, passando pelas escolhas interpretativas, tiques, emoções, até à própria opção de filmografia em cometer propositadamente o suposto crime de passar à frente da câmara quando a testemunha está a ser interrogada, não olvidando nunca o refinadíssimo bom-gosto do realizador William Friedkin (muito pouco falado mas imortalizado para sempre com um catálogo de clássicos intocáveis) no que concerne a planos, aproximações lentas, cortes e transições suaves mas contundentes faz deste filme o que eu considero o melhor de todos a emular um julgamento real, de todos os exemplos acima mencionados.
Destaco uma particularidade hilariante em não ter existido rigor ao tentar tapar o furo na orelha esquerda de Kiefer Sutherland (Comandante Queeg), que rapidamente me fez esquecer desse detalhe inicialmente distraidor com uma interpretação monstruosa, impactante e multifacetada.
Outro actor que tem de ser destacado é Jason Clarke, que está na melhor fase da sua carreira, por claro mérito próprio (antes deste filme, Oppenheimer. Que bem que ele aí esteve!) e que me lembrou assustadoramente o Dr. Wayne Dennison (um dos advogados que representou Depp contra Heard) pelos maneirismos, voz, condução das interrogações às testemunhas, enfim incorporou de corpo e alma um advogado.
Preciso destacar também os diálogos. Houve muito pouco condimento cinematográfico e muita substância palpável assente em realismo. Dei por mim a identificar estratégias de abordagem, ataques, defesas, impugnações de testemunha, fortalecimento de testemunhos, linhas argumentativas a favor, contra, enfim, como se de um dérbi se tratasse e eu estava a “entender” tudo o que se passava no jogo, na genuína perspectiva de perceber pelo julgamento, quem é o verdadeiro culpado.
Fim de filme. Volvida a hora e 48 minutos de rodagem, é altura de pesquisar para rascunhar mais uma dissertação…
Nesta fase de “descoberta” (fase do processo judicial em que ambas as partes obtêm as provas uma da outra por variadas formas) entendi que na verdade o senhor Wouk é o dramaturgo que escreveu esta peça de teatro em 1951.
Agora tenho 2 trabalhos de casa: assistir ao original protagonizado por Humphrey Bogart na pele de Comandante Queeg e eventualmente ler a peça.
Menção honrosa e de pesar a Lance Reddick e a William Friedkin que não viveram o tempo suficiente para serem devidamente agradecidos pelos respectivos contributos no que se tornou o seu último filme.
Atando o laço a este texto extenso (como se de um processo legal se tratasse), terminarei como comecei: a vida imita a arte mais vezes que a arte imita a vida e a roda de hamster que é a existência indicia que sem a peça original, não existiria (na minha vida útil) a versão de 1954, que talvez não faria com que Lumet quisesse explorar outra perspectiva do julgamento, que anos mais tarde, na era da atenção acéfala e culto da personalidade não houvesse youtubers-advogados que gravitam naturalmente para a Casa dos Segredos de Depp v Heard, que não me colocaria tão interessado como sou sobre a temática e que não me permitiria apreciar nuclearmente The Caine Mutiny Court-Martial.