The Last of Us é adaptação fiel, que foca no que há de melhor na franquia

Dez anos após sua estreia nos videogames, a franquia The Last of Us recebe uma adaptação live-action para a televisão. Com supervisão da Naughty Dog, desenvolvedora dos jogos, e o envolvimento direto de Neil Druckmann, argumentista e realizador dos dois jogos da série já lançados, que auxiliou nos textos do programa e realizou um dos episódios, a HBO, produtora do seriado, buscou, além de um alto nível de qualidade, garantir muita fidelidade ao material original. Logo, o resultado não poderia ser outro: The Last of Us se consagra como uma das, senão a melhor adaptação de games já feita!

The Last of Us chega à TV com força, pois entende que adaptação não é o mesmo que tradução. Sim, um dos principais elementos que chamam a atenção no jogo é o aspecto cinematográfico de sua narrativa. Fato que faz muitos defenderem que, ao trazê-lo para outra mídia, basta apenas copiar o texto original e regravar as cenas. Trabalho fácil, o mais difícil já foi feito, dizem. O problema é que quem faz tais afirmações, se esquece de que videogames e séries televisivas são mídias distintas, que pedem por abordagens narrativas muito diferentes.

Nos videogames, além da necessidade de prender o jogador com seu enredo, quando a proposta do game é o foco narrativo, é preciso também mantê-lo interessado com um empolgante looping de horas de gameplay. Em uma série de TV, a prioridade é majoritariamente voltada ao enredo, pois os seriados não têm o mesmo luxo dos games, que podem dividir igualitariamente sua duração entre a ação, e o desenvolvimento das personagens.

No cinema e na televisão, se faz uso de um recurso narrativo chamado “elipse”. Uma elipse permite que acompanhemos personagens em suas jornadas narrativas sem que percamos tempo com banalidades ou a monotonia dos caminhos percorridos, literal ou figuradamente, entre uma ação importante e outra. Já nos videogames, as elipses são mais ausentes. Acompanhamos nossas personagens do início ao fim, das mais emocionantes cenas de ação, às longas e chatas viagens entre uma missão e outra. Há, nesses períodos de respiro dos games, muito espaço para desenvolvimento não só das personagens, como dos universos presentes nos jogos.

Nos games de The Last of Us, muito é desenvolvido quando a ação para, e se caminha. Relações e contextualizações do universo se constroem enquanto as personagens vagam pelos destroços de uma América do Norte pós-apocalíptica, e interagem com demais sobreviventes da pandemia que atingiu esta versão alternativa do nosso planeta. E é por perceber que a maior força de The Last of Us mora aqui, nas personagens desta história, no mundo hostil que as cerca e na dramaticidade que envolve tudo isso, que a adaptação da HBO garante seu sucesso.

The Last of Us da HBO foca no que importa: na narrativa e no drama. A série contém ação, é claro, mas com uma dosagem muito inferior aos games. Aqui, os confrontos contra ameaças de humanos ou infectados servem muito mais como um demonstrativo do perigo constante em que Joel e Ellie, protagonistas da história, estão inseridos. O seriado tem como prioridade a exposição dos diálogos para desdobrar a relação da dupla, mas acerta ao também usar de olhares, gestos e silêncios para dizer o que não cabe em palavras. 

Um ótimo exemplo disso, é um momento do jogo que, assim como praticamente tudo na série, é transportado quase identicamente para a televisão, fazendo apenas sutis alterações que se apropriam mais ao formato televisivo. No game, Ellie confronta Joel, e o abala ao tocar em assuntos pessoais para ele. Então Joel responde dizendo que aquilo se tratava de um gatilho emocional para ele, e que Ellie não deveria tocar no assunto. Na série, Ellie o confronta da mesma forma, mas, diferentemente do que acontece no jogo, Joel responde Ellie com um simples e seco “não”. A resposta é sutil, direta, e diz muito com silêncio, e o olhar de um homem cansado, e desestabilizado pela perda. The Last of Us, a série, sabe o valor do espetáculo e da grandiosidade, e quando os atinge, é extremamente efetiva. Mas, acima de tudo, sabe que, quando o assunto central são pessoas e suas relações, o menos é sempre mais.

Outra ótima decisão tomada pela série, é como decidiram abordar as personagens secundárias que Joel e Ellie encontram durante sua jornada. Diferente do que ocorre no game, onde os encontros são breves, temos mais tempo para conhecer cada uma das pessoas que entram na vida dos dois. Assim, essas personagens que originalmente serviam para, além de ajudar a desenvolver a relação dos protagonistas, apresentar novas mecânicas de gameplay e novas ameaças, agora se aprofundam muito mais no contexto em que cada uma delas está inserida, agregando ainda mais profundidade ao universo da série. Liberdades são tomadas, e mudanças, algumas vezes pequenas, outras radicais, são feitas em relação a elas. Todavia, o mais importante de tudo é mantido: todos encontros afetam a relação entre Joel e Ellie, seja sutil ou drasticamente. Ao cruzar seus caminhos com diferentes pessoas em sua longa viagem pelo país, a dupla encontra, em relações terceiras, meios de enxergar e agarrar com mais facilidade os laços que lentamente criam entre si.

Um elemento muito utilizado nos jogos da franquia para desenvolver seu universo é o uso de documentos variados perdidos em meio à destruição. Tais documentos carregam histórias de sobreviventes, dados oficiais de órgãos do governo, entre diversas outras variações de conteúdo escrito que nos ajudam a entender tudo o que aconteceu e segue acontecendo em The Last of Us. Na série, flashbacks foram os recursos escolhidos para suprir a falta desta essencial mecânica dos jogos. Essas cenas nos levam de volta para antes dos eventos dos jogos, explicando de forma inteligente as origens da pandemia e do que se trata o cordyceps, fungo responsável pela infecção que desencadeia todo o caos na franquia. Dessa forma, The Last of Us evita inflar seu texto com excesso de diálogos explicativos e não naturais. Uma decisão elegante que funciona muito bem.

Quanto à trama em si, The Last of Us nunca foi muito original. A história de um homem amargurado, fadado a escoltar e/ou auxiliar uma pessoa da qual inicialmente vê apenas como uma carga, um mero objeto cujo cuidados são necessários para cumprir sua missão, já foi contada aos montes. Porém, o que faz The Last of Us se destacar em meio aos demais, é como a franquia usa de sua narrativa para provocar constantemente o público, levando sua história por caminhos dúbios, moralmente questionáveis que fazem balançar a relação do público para com os protagonistas. A série se mantém fiel a tudo isso, e apresenta conflitos que nos levam a todos, personagens e espectadores, a conclusões difíceis, amargas e confusas, que tornam a experiência de The Last of Us, como um todo, difícil de digerir.

Pois The Last of Us é isso. Mais do que uma série sobre zumbis, a franquia da Naughty Dog sempre teve como seu principal tema as complexas relações humanas, e como situações extremas podem levar as pessoas a agir de formas condenáveis. O que somos capazes de fazer para sobreviver? Para mantermos a integridade de quem nos é querido? Quais as barreiras que somos capazes de superar por amor? E os limites que podemos romper para tentar anestesiar nossa dor? The Last of Us se propõe a responder tudo isso, e a resposta não costuma ser agradável.

Complexa e sensível, muito da qualidade da série seria perdida, não fosse seu excelente elenco. O destaque, é claro, fica com Pedro Pascal e Bella Ramsey, que vivem, respectivamente, Joel e Ellie. Ambos não tentam mimetizar as personagens originais, o que traz grande autenticidade aos seus trabalhos. O Joel de Pascal é amargurado e violento, mas traz em cada olhar, tremida de mãos e hesitação na voz, as marcas de uma vida sofrida, carregada de perdas, desesperança, e uma dor aparentemente incurável. Ramsey, com sua Ellie, supera qualquer crítica que tenha sofrido devido sua aparência tão distinta da personagem original. Que maravilha é ver sua entrega em The Last of Us! Cheia de vida, mau humor e sarcasmo, Ramsey constrói uma Ellie que esconde suas fraquezas com constantes afrontas, que guarda muitos traumas na sutileza de seu olhar enigmático, e entrega uma catarse emocional quando o texto leva sua personagem ao extremo.

Pascal e Ramsey não são exatamente o Joel e a Ellie que conhecemos dos videogames. São versões singulares das mesmas personagens, próprias de uma nova velha história, construídas com sua própria identidade e carisma. 

E, enfim, apesar de um último episódio que pedia por uma maior duração, ou até mesmo um capítulo extra antes de sua conclusão, para poder discutir melhor o impacto do desfecho do oitavo episódio no psicológico de Ellie, e prepará-la para chegar ao fim de sua jornada, The Last of Us conta com um ótimo ritmo, que sabe usar da ação, sem exageros, e respeita os respiros que sua narrativa exige para desenvolver com qualidade suas personagens. Mantendo-se fiel ao que torna os jogos ímpares, o seriado não tem medo de desagradar com decisões questionáveis, e leva suas personagens a desfechos amargos de difícil digestão.

Nos resta agora esperar para o que vem a seguir. Quem jogou os games sabe que, a partir de agora, tudo fica cada vez mais obscuro, angustiante e exaustivo. A HBO tem uma missão complicada pela frente. The Last of Us Part 2 é uma das obras de videogame mais provocativas, angustiantes e polêmicas já criadas. Além de adaptar sua grande história para a TV, eles têm de trazer ao público um sentimento equivalente ao que é transmitido aos jogadores do videogame: uma constante sensação de sabotagem emocional, onde somos forçados a agir contra nossa vontade, e sermos cúmplices de atos deploráveis causados em nome da vingança e da dor. A sequência de The Last of Us é desagradável, punitiva e cruel. E assim também devem ser as próximas temporadas da série. Que venham! Mas venham com coragem e impiedade!


The Last of Us
The Last of Us

ANO: 2023

PAÍS: EUA

DURAÇÃO: 9 episódios

REALIZAÇÃO: Ali Abbasi, Jeremy Webb, Neil Druckmann, Peter Hoar, Liza Johnson, Craig Mazin, Jasmila Zbanic

ELENCO: Pedro Pascal, Bella Ramsey, Anna Torv

+INFO: IMDb

The Last of Us

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1 Comment

  1. A adaptação tá maravilhosa, eu amei! Mas ao final senti que foi tudo um pouco rápido demais, muito coisa pra se passar em poucos episódios. Tinha muita história e muitas aventuras mais que poderiam ser exploradas. Fora isso tá lindo!

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