Um filme que se promoveu e disse ser uma coisa, que afinal não sabe bem o que quer ser, no entanto tenta impingir a sua vontade, qual mafioso com língua de prata.
Para os fãs, como eu, daquela que eu e muitos consideram uma das melhores series dramáticas de todos os tempos, imperando no mesmo nível de Breaking Bad ou The Wire, Os Sopranos, este filme tira-nos o tapete por motivos que não sendo os piores, deixam um sabor de traição a quem ousou sonhar que o filme seria sobre Tony Soprano.
O facto de ser co-escrito e co-produzido pelo criador da série David Chase e o papel de Tony Soprano na adolescência ser interpretado por Michael Gandolfini, filho de James Gandolfini, criou algumas expectativas que rapidamente foram abatidas a tiro na nuca da esperança, como um bom gangster faria para silenciar um problema.
Eu sei. Vimos o trailer e o filme é sobre Tony Soprano. Lemos a sinopse e é sobre Tony Soprano. Vemos toda a publicidade à volta do filme e é sobre Tony Soprano. Para não parecer que estou a ser injusto, Tony Soprano de facto aparece no filme. Mas ficaria muito confuso se me saísse num teste a pergunta: ‘Quem é o alvo do enredo neste filme?’ e a resposta certa fosse Tony Soprano.
Neste filme sobre a mafia italo-americana dos anos 60 e 70, que não é sobre Tony Soprano, o foco vai mudando entre as tensões sociais e da comunidade negra e aquele que seria o grande exemplo de Tony Soprano, Dickie Moltisanti, pai de Christopher Moltisanti (Michael Imperioli) que vai narrando o filme cada vez que nos esquecemos que deveria ser sobre Tony Soprano. Esta narração parece que tinha como objectivo uma ligação etérea entre o passado e o futuro, mas é constantemente esquecida ao ponto de sair e nunca encaixar no tom do filme.
Alessandro Nivola como Dickie Moltisanti, e Ray Liotta como seu pai ‘Hollywood Dick’ Moltisanti e respetivo irmão gémeo são os destaques em duas prestações muito sólidas e que nos prendem ao filme, mesmo nunca sabendo sobre o que o filme é.
O forte do criador David Chase continua a ser a criação de personagens com múltiplas camadas onde as virtudes brilham no meio de personalidades tão impuras e detestáveis obrigando-nos a tomar o lado de vilões. Esta dicotomia que nos faz ver o outro lado de quem comete erros capitais, como seres humanos capazes de emoções com virtude, é um exercício de extremo valor e de dificílimo enlace que merece sempre destaque e elogio quando bem executado.
O grande problema centra-se mesmo no tal enredo que não sabe o que quer ser e o que nos quer dizer. Ainda que tenhamos bons personagens e um universo rico cheio de detalhe, o filme perde-se entre o pano de fundo que quer pintar, os novos personagens bem construídos e a história que queria contar, mas que fica em segundo plano.
A construção inicial é demasiado longa e no início do segundo ato parece mesmo que afinal é um filme sobre a reivindicação e luta sobre direitos fundamentais da comunidade afro-americana. Mas sem aviso prévio, Dickie Moltisanti toma as rédeas do enredo com um carisma fantástico de um criminoso de sangue frio que quer balancear a sua vida de crime com uma ilusão de praticante do bem, numa referência muito dissimulada aos próprios demónios que Tony Soprano enfrentaria mais tarde na série.
Parece que o filme está sempre a dar-nos o isco de como tudo o que construiu até então transitaria para Tony Soprano, mas essa passagem de testemunho nunca acontece a tempo de ser explorada.
A meio há uma cena completamente fora do tom do filme, que aparente ser um resto do tom mais espiritual que o filme teria com a narração de Christopher Moltisanti, onde há uma tentativa de justificar a relação difícil de Tony Soprano com o então ainda bebé Christopher Moltisanti quando este chora ao interagir com o adolescente Tony Soprano e a ideia é concluída pela sénior que partilha da sua sabedoria popular em que bebés sabem de ‘coisas do além’. É um daqueles momentos onde o filme repentinamente lembra-se que deveria ser Tony Soprano e tenta nos convencer disso, para apenas logo depois se voltar a esquecer de quem é e para onde vai.
Quando a passagem do testemunho finalmente acontece já com tudo a desabar, bem… o filme acaba. O balde de água fria é imenso e nada é explicado. Talvez fique subentendido, mas só para quem viu a série. Torna-se uma limitação grande para quem quer ver apenas um filme e sai mais confuso porque não tem as bases para juntar as pontas soltas.
Toda esta confusão poderá ser justificada pela experiência de David Chase em escrever enredos mais densos, algo permitido pelo formato das séries, que também abre caminho à exploração de vários personagens. Num filme tudo isso tem de ser compactado e canalizado para um foco, algo que claramente se tornou difícil depois de se ter contruído tantas personagens interessantes com tão pouco tempo para as explorar.
Talvez David Chase e o realizador Alan Taylor se tenham apercebido do potencial dos personagens criados e ficaram divididos entre quem deveria ter o protagonismo. Até acharia interessante se o filme fosse mais concreto e se focasse nas personagens que na época descrita tinham de facto o protagonismo antes de Tony Soprano o assumir para si. Mas ficar a meio das duas ideias acabou por tirar qualidade final a um produto cheio de elementos com potencial para mais.