The Matrix Resurrections não desafia, não provoca, não inova nem faz pensar. O fan-service fará qualquer aficionado da Marvel orgulhoso por se ver representado como fã ou encolerecido por achar que outra produtora está a usar e abusar do açúcar para tornar este Tang bebível.
Isto é um bom exemplo de como se consegue um produto pouco acima de medíocre quando se faz a coisa de forma contrariada e sem a totalidade das partes que fizeram da franquia o que é. Caso prático disso é a realização a solo da irmã Lana Wachowski.
A ressurreição tem muito que se lhe diga. A reincarnação também. Mas a primeira é mais fácil de lidar de tão simples que a segunda conceptualmente é.
Talvez por a ressurreição ter sido mal-entendida ou um mero nome a alfinetar ainda mais a pressão que a produtora Warner Bros. tem vindo a fazer para trazer a franquia ao cinema actual, deparo-me com a distorção do seu conceito por todo o filme que visa recontar o que se desdobrou em passados três filmes para estabelecer.
Sobre o enredo: Neo conseguiu a paz no final da primeira trilogia, tendo negociado com as Máquinas que se livraria do Agente Smith a troco de tréguas. Deu-se uma escassez de energia entre as Máquinas, o que despoletou uma guerra civil entre elas. Como Morpheus descobriu Neo e fez valer a profecia, foi nomeado o presidente dos humanos e aparentemente ignorou a potencial ameaça em ressurgimento, tendo Zion sido dizimada com ele. Niobe é agora a presidente de IO, a nova colónia humana. Neo, que tinha morrido em sacrifício último, foi ressuscitado pelas Máquinas e enfiado novamente na incubadora original.
O Analista (uma inteligência artificial) entende que Neo próximo de Trinity faz com que ambos produzam uma abundante quantidade de energia pois são movidos pelo mútuo e intenso sentimento de amor, ao mesmo tempo que extrai o código-fonte da matriz, de que Neo é composto.
Assim esta versão melhorada do Matrix faz com que a manipulação emocional dos humanos permita essa extração eficiente a toda a gente. É exposto que Neo deixou uma brecha no sistema para ser encontrado, bem como incorporou Morpheus sob a forma de Agente, porque, conforme estabelecido previamente na saga, o Matrix é um loop de simulação de vida e já o Neo que conhecemos foi a 5ª iteração do mesmo. Entretanto Neo é re-acordado à realidade e, já no terceiro acto, visa-se a libertação de Trinity, que se estabeleceu como a única coisa que Neo se importou verdadeiramente.
Sobre alfinetes: há toda uma crítica social que se alonga copiosamente em quase 1 hora de filme inicial. É questionada a realidade, outra vez. É questionado o livre-arbítrio versus destino, outra vez. É perfurada a quarta parede, outra vez. É colocado em cheque o tema em voga da saúde mental, outra vez.
Sobre fan-service: contemplei que 20% do filme se sustentou em imagens da franquia até agora, como que levando a colher à boca do espectador que não tenha tomado a devida diligência de rever a trilogia anterior ou expondo a inaptidão em revitalizar o enredo por forma a impor o pretendido soft-reboot deixando a obra respirar.
Sobre rebooting: a reescritura de um guião é tão complicada quanto a qualidade e o vincado estabelecimento e aceitação transversais do mesmo à comunidade de fãs. Assim sendo, tirar este coelho da cartola foi mais espalhafatoso que eu a tentar fugir a mais uma analogia do coelho da Alice.
Desta feita, Neo, que desde sempre se entendeu resignado até lhe ser mostrada a verdade, para lhe ter sido passada a crença de quem verdadeiramente era, para lhe conferir a responsabilidade da sua existência acima de si e até Trinity, tem a sua viagem a despenhar-se num mar qualquer da Indonésia, de onde se recuperam apenas alguns dos destroços.
Trinity era o interesse amoroso que também preponderou em fazer de Neo, O Tal. Morpheus foi o mentor e crente na potencialidade escondida de Neo para fazer dele O Tal. Lana Wachowski não contente com isso, agora confere a Trinity o dissabor atroz e resignatário de, pasme-se, ter constituído família quando na verdade gosta é de motas. Morpheus é jocosamente menos sério e sábio, para apenas aparecer com piadas, disparar tiros, dar uns pontapés e vestir-se impecavelmente. Este Neo, o re-acordado é agora irresponsável, juvenil e confuso, deitando a perder a capacidade de julgamento entre o que representa e porque existe a troco de vagina, perdão, amor.
Niobe agora governa sozinha quando antes Zion era liderado por um colectivo de homens e mulheres e Trinity agora voa e é mais um Neo, porque empoderamento e tal.
Sobre aspectos técnicos do filme: a coreografia da acção é péssima, ao estilo Taken 1, onde mal se entende o combate, com cortes e cortes e cortes; a paleta de cores colocou de lado o filtro esverdeado, retirando algum do charme tecno-apocalíptico da franquia, os efeitos digitais foram sobriamente colocados de parte no que toca a sequências de acção com pessoas tendo detectado duas instâncias em que os sujeitos eram de plasticina, a música bebe do que o original teve de bom e 2h27 de filme é excessivo para o que The Matrix Resurrections tem para mostrar.
The Matrix Resurrections parece uma tentativa de sabotagem por passar o tom de que nem queria existir, onde o simbolismo e camada acima de camada acima de camada de complexidade e reflexão foram substituídos por referências às cores azul e vermelho, representação muito curta e transversalidade do conflito Máquinas vs Humanos sacada a ferros pelo bem de ter de se fazer este filme.
Mais do que entender quem sou e o que faço aqui, pelo questionamento que a franquia me fez ter, foi ter entendido o verdadeiro porquê do lançamento do filme em cinemas e HBO.
A resposta? Meh.
Excelente resenha. Falou tudo o que muito gostaria mas a modinha não deixa. Muito bom.