Este filme é sobre segundas oportunidades depois de um azar do caraças macular quase que irremediavelmente as primeiras. Pena terem tido uma oportunidade para contar uma história ramificada de redenção, para apresentar ‘isto’.
Desconhecia por completo o trabalho de Florence Pugh. A sua face é muito agradável de assistir a The Wonder, que recorre a planos fixos e zoom-in lentos para manter o tom arrastado de lume-brando com que nos brinda. Em pesquisa, sinto-me na empática tarefa de explorar Midsommar e Little Women, particularmente.
Pugh é Lib Wright, uma enfermeira inglesa destacada para acompanhar Anna O’Donnell (interpretada por Kíla Lord Cassidy) que não come há 4 meses e é tida como ídolo religioso de uma região da Irlanda assolada pela Grande Fome, altamente ansiosa por um símbolo de esperança, tal é a premissa perfeita para um povo esganado para se reerguer.
A sua prestação é o melhor que consegue face à história que teima em se arrastar por subentendimentos e deixas visuais que lá se explicam por diálogo expositivo preguiçoso e pouco inspirado.
De todo isto é uma apreciação negativa à sua prestação. Há ali vislumbres de talento notório. Escolhas de representação muito bem conseguidas, cativantes, sinceras, cruas e reais, sem desarmar nunca da sua beleza natural e, tanto quanto sei, inalterada. Mas só deu mesmo para o alcance breve de todo o filme.
Kíla embebe-se bem da sua personagem, com a limitação de não ter sido bem representada fisicamente quando lá ganhou fome, a dada altura do filme. Não obstante, há aqui muito talento a cultivar. Anna não é nada fácil de conceber e exercer como personagem. Parece uma praia fluvial, onde de repente se perde o pé, de tão subitamente profunda para somente se esbarrar nas pedras e seixos com uma dor aguda e incómoda nas canelas e solas dos pés, quando só o seu arco daria para um filme sozinho. É triste. Desejei tanto que houvesse mais de si, mais do que foi dado. Mais no geral de todos. O que me leva ao pensamento seguinte: o aproveitamento do tempo de rodagem.
Perdeu-se muito tempo com nada de relevante, nada a acontecer, foi penoso. Intencional? Será que Sebastián Lelio quis criar uma experiência penosa para mim, o espectador, para emular o penitente processo da enfermeira a tentar deslindar uma garota assexuada do estômago? Ou para emular o processo doloroso da garota que diz comer maná da Graça de Deus? E daí não sei… O catálogo do senhor realizador prime pela exploração da condição humana em diversos contextos das personagens principais dos seus filmes. Mas também não vou explorar isso para me responder.
Hoje é um daqueles dias em que o pragmatismo impera e a história de The Wonder não merecia ter tanto arrasto para nada dizer ou fazer, ao passo do que poderia ter desembrulhado e não desembrulhou. Não, não e não. Irlanda ventosa chovosa, e “lisboetamente” cinzentona não me amainou em nada o semblante com os seus planos amplos e simbólicos de tão pouco de pessoa representada numa imensidão de nada, solitária ou em grupo solitário, num potencial subtexto de isolamento de pensamentos, palavras, actos e omissões.
Mais suporto esta tese com o facto de o apanágio do típico filme actual bater entre as 1h55 e as 2h de rodagem e The Wonder ter 1h48. É-me irritantemente evocativo daqueles preços esquisitos de hipermercado que nem terminam em ,99, nem em valor redondo.
Nem quero falar daqueles três segmentos que perfuram a 4ª barreira. Para quê? Porquê? Para quem? Estou quase, quase, quase a chamar Lelio de pretensioso. Mas não o vou fazer hoje.
O criador cria e o consumidor consome. Ele lá fez esta sua maravilha que me deixou maravilhosamente insatisfeito, pelo meu entendido desperdício do que optou por não desenvolver.